Diacho! Procurei em vão nas estantes da sala.
Confiro, mais tarde, entre os livros que tenho vindo a arrumar no sótão. Nada! Mas lembro-me perfeitamente de que possuía um exemplar primorosamente encadernado, que comprara há muitos anos, ao preço da chuva, na feira do livro.
Tê-lo-ei emprestado? Será mais um desses casos em que, ansioso por partilhar uma certa obra de um certo autor com um amigo (e, agora, já me tem acontecido com os jovens filhos de amigos), a entrego generosamente, cheirando-lhe uma última vez as páginas, para que o levem, para que o desfrutem, e que, depois, nunca mais me será devolvida? Mas, em geral, sei a quem emprestei cada um dos meus livros não devolvidos. Posso não ter coragem para os pedir de volta, mas sei a quem passaram a pertencer. Deste, nada sei. Perdeu-se. Desapareceu.

Porque quero tão bem a este romance? Principiemos pelas razões mais periféricas à obra em si, as quais, no entanto, constituem parte do meu amor por ela: não me é indiferente a aura de génio romântico que envolve estas irmãs que, tendo-se dedicado à escrita, se tornarão, todas elas, autoras maiores - Charlotte Brontë, a mais velha, que associamos imediatamente a Jane Eyre ou a O Professor; ou Anne Brontë, a mais nova (e menos conhecida), que publicou Agnes Grey e O Inquilino de Wildfell Hall. Resta a irmã do meio: Emily Brontë.

Emily, a minha Irmã Brontë predilecta, toca-me ainda pelo pormenor de ter escrito um único livro; e, tendo escrito um livro único - ou seja, sem ensaio e erro, sem tentativa e preparação, sem um percurso em que se viesse aperfeiçoando -, logo este haveria de ser tão grandioso e perfeito como Wuthering Heights: O Monte dos Ventos Uivantes.
No romance propriamente dito, começa por me parecer impressionante a maneira como a autora veste

Heathcliff, filho adoptado, escuro como um cigano, de cabelo revolto e negro, demoníaco e terrível no seu ódio que tudo devora e destrói em torno de si, é uma das personagens mais densas e torturadas de toda a literatura: percebemos que nunca poderá fazer feliz quem quer que dele se aproxime, ou dele dependa. Sabemos (é-nos dado a ver, directa ou indirectamente), através de que actos se cumpre como um homem destrutivo; apiedamo-nos, sem dúvida, de todos os seres frágeis que caem na sua alçada maligna, no seu plano para fazer pagar, que atinge, indiferentemente, culpados e inocentes; mas, por outro lado, também não ignoramos de que infelicidade radical é feito o mal que o consome, de que tristeza imensa é feita a sua incapacidade para se relacionar, a sua misantropia, que dor o move na perseguição dos demais.
Heathcliff merece, talvez, o inferno. Mas Heathcliff vive o inferno. Porque, ao contrário da afirmação de Sartre, o inferno não são os outros. O inferno é, em última análise, ter perdido os outros, não poder aproximar-se deles sem os queimar - viver em si: ser, perpetuamente, a dor de ser quem se é. E, mais do que não ser perdoado, o inferno é não ser capaz de perdoar.
Tenho de reencontrar o Monte dos Ventos Uivantes.