Gosto de pensar em
A Morte em Veneza, de Thomas Mann, como sendo um romance acerca de um sentimento tabu, inconfessável e inconfessado.
Inconfessado e, é evidente, irrealizado.
Vemos, alinhada à esquerda, a fotografia em que se fazia a promoção do filme onde Luchino Visconti provou o carácter impressionantemente plástico e cinematográfico da narrativa de Thomas Mann.
Ao contrário de
Lolita, esse outro notável livro sobre um homem maduro que sente uma obcecada atracção por uma ninfeta (também transposto para um filme - mas outros há - de Stanley Kubrick), adulto esse que, de algum modo, tudo transforma e transtorna na sua vida para realizar o seu desejo,
A Morte em Veneza mostra-nos um fascínio que é totalmente platónico; que nunca poderia não ser platónico, porque então implicaria uma contaminação da pureza que, precisamente, se ama porque é pura, se ama na sua qualidade de pureza.
De certa forma, o centro do romance de Thomas Mann é a questão do erotismo. Mas, na visão clássica de um romancista ideologicamente convencional como Mann, o amor de Aschenbach por um adolescente é sublimado; confunde-se com o prazer com que se contempla uma es
cultura ou uma pintura: confunde-se, sobretudo, com o puro gosto pelo Belo. Mais do que o menino Tadzio, é a Ideia da mocidade o que Aschenbach ama. Ama um corpo, é claro, mas, de certo modo, um corpo mais ideal do que carnal, porque ainda não tocado por nenhum dos males da carne, ainda não corrompido, ainda não conformado com a sua condição de matéria.
E posso ver, em
A Morte em Veneza, a ligação a algo frequentemente referido mas, do meu ponto de vista, muito incompreendido: a homossexualidade masculina típica da Antiguidade Grega; «incompreendida» ou «reduzida» a um único aspecto: porque, ainda que, sem dúvida, um elemento sexual estivesse presente no culto Grego da relação entre um homem e um adolescente, essa relação exprimia, principalmente, o fascínio por um certo ideal do belo. Um belo que, na Grécia, só o corpo simultaneamente masculino e jovem mais esplendorosamente encarnava.
Não por acaso, Veneza, a ambígua Veneza, é o lugar onde o amor de Aschenbach tem a sua génese. Porque, em Mann, em toda a obra de Mann aliás, se assiste ao modo como, sob a construção e a exaltação do Belo, se esconde sempre o pútrido e o fétido, o perverso e monstruoso. E Veneza é a própria expressão desse engano e dessa indefinição: ou por causa de uma ameaça velada que sopra, nos ventos malignos, sobre aquela arquitectura mítica; ou da epidemia que se oculta e todos os habitantes silenciam, e da morte que faz o seu trabalho sob a graciosidade de pintura renascentista da cidade líquida. Os monstros retornam sempre, na figura grotesca de velhos que se fazem passar por jovens, ou dos mais inquietantes sinais da corrosão e da putrefacção. É uma espécie de luta oferecida, pelo autor, na delicadeza de uma escrita irrepreensivelmente clássica - e essa luta é, afinal, a luta entre o indigno e o sublime, entre o desejo e a busca do ideal, o impuro e a pureza, tentando definir-se uma fronteira do belo, sabendo que este é, em última análise, unicamente a superfície do horrendo.
Os monstros expostos por Nietzsche e Freud não estão longe desta visão de uma luta sem tréguas que só a morte, inesperadamente, soluciona.
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