É uma das minhas aquisições na feira do livro.
O título, impronunciável, é HHhH. [Como o lêem os meus leitores? «agá maiúsculo, agá maiúsculo, agá minúsculo, agá maiúsculo?»]; salva-o o subtítulo, que é o nome pelo qual sempre o podem pedir: Operação Antropóide. [«Salva-o» é força de expressão: o próprio narrador confessa que o editor discordava deste nome, que remeteria enganadoramente para uma certa ficção científica muito em voga: Ludlum, será...?]
Recebeu o Prémio Goncourt para 1º Romance 2010. Já me insurgi alhures contra esta tendência nefasta para se avaliar um 1º romance como... um 1º romance. [Não resisti ao piroso das reticências]. Como se em algum lugar estivesse determinado que um 1º romance tem direito a uma complacência especial, que, na verdade, o diminui. «É bom?»; «Sim. Para 1º romance». Sabemos de autores cuja primeira obra foi a melhor de todas, e que nunca mais, desde aí, conseguiram uma tão perfeita combinação de todos os ingredientes.
HHhH é um romance sobre o nazismo. Sobre Heydrich, uma espécie de demónio distinto com voz de falsete (a «besta loura»), e sobre o contexto social e histórico que lhe moldará o carácter e oferecerá as oportunidades de brilhar perversamente; sobre Himmler e sobre Hitler, naturalmente, de modo que ficamos a perceber o propósito dos H maiúsculos. Mas, também, e, a partir de certa altura principalmente acerca de Gabcik (que queria matar e acabou sendo morto); e sempre sobre o próprio narrador, que investiga e estuda minuciosamente, em Praga, os elementos para a redacção de um romance: este romance.
Portanto, eis talvez a questão decisiva da obra: em que medida se trata de um «romance» ou de uma descrição da «verdade histórica e biográfica» cruzando-se com a «verdade autobiográfica?» As namoradas de que fala ao leitor, os episódios pessoais que evoca num tom confessional, raiando o despudor, a intimidade da sua relação com a cidade de Praga (onde, sublinha uma nota na capa, o autor autêntico, Laurent Binet, efectivamente viveu) imprimem uma sensação de verosimilhança quase arrepiante.
E mesmo os erros, que não desaparecem do seu lugar: por exemplo, o narrador aceita precipitadamente uma informação e quando, mais tarde, se apercebe da sua imprecisão, rectifica-a páginas depois, ao invés de simplesmente suprimir o erro que expusera antes. [Aliás, ilustro o procedimento. Escrevi, uns parágrafos acima, que os «agás» do título são as iniciais de Heydrich, Himmler, Hitler. Leio no livro, na página 121, que HHhH alude, antes, a uma frase da SS: Himmlers Hirn heisst Heydrich, ou seja, «o cérebro de Himmler chama-se Heydrich». Mantenho o erro e a emenda...]
O eixo é, portanto, a ideia de um «pacto com o leitor». Como se fosse realmente hediondo transformar pessoas reais em personagens de ficção, imaginando diálogos possíveis mas não provados. É, neste sentido, um romance de uma perturbadora originalidade: sob as questões éticas e políticas acerca das quais reflecte a propósito do nazismo e do holocausto, ou da formação de personalidades vocacionadas para o mal, perpassam estas outras questões éticas e políticas sobre a relação entre o autor e o leitor.
Lê-se como um romance que se vai escrevendo sob os nossos olhos, sem rascunho, minando-se e sabotando-se a si mesmo, guiado pela ideia de um dever moral - o da verdade sem restrições - que, em última análise, não se compatibiliza com o trabalho da ficção e que, portanto, seria impossível a um romance.
1 comentário:
Estou para comprá-lo via Fnac. Até onde sei, não foi traduzido para o Brasil. Um abraço, Fabio. http://bibliotecadofabio.blogspot.com
Enviar um comentário