terça-feira, 10 de maio de 2011

PIERRE LOUYS: A MULHER E O FANTOCHE








Escrevi aqui, há dias, a propósito de um filme projectado na última sessão do clube de cinema, e acerca do qual alguém, nessa sessão, mencionou dois romances.


O filme, já agora, chama-se O Diabo é uma Mulher, e é protagonizado por Marlene Dietrich. Foi realizado num tempo onde, como lembrava precisamente quem o apresentou, o cinema estava ainda a descobrir-se: não se tinham instalado fórmulas nem convenções cinematográficas, de modo que quase tudo valia como experiência, ensaio, tentativa - e originalidade.

Um dos livros associados ao tema foi Fiesta, de Hemingway. Li-o, já o comentei.

O outro é A Mulher e o Fantoche, de Pierre Louys: concluí-o ontem à noite. É o romance, publicado em Paris (1898), que está na origem do filme de Sternberg.

Se descontarmos uma «escrita de época», em que seria perfeitamente aceitável, por exemplo, construir-se a fala de uma personagem como um discurso literário, longo e prolixo, sem quaisquer marcas de oralidade; se descontarmos o facto de que mesmo as personagens jovens e populares, como Concha Perez, se exprimem filosofando numa linguagem assaz sofisticada, isto é, se nos concentrarmos no essencial, apercebemo-nos de que estamos, por várias razões, perante uma obra verdadeiramente subversiva no tratamento dos tabus sexuais: Concha é, inicialmente, uma moça de dezassete anos desejada arrebatadamente por homens maduros, que querem fazer dela sua amante; por outro lado, o espectro do sado-mazoquismo não podia definir-se mais claramente; e é perturbador o modo como ela manipula Don Mateo, conduzindo-o ao limiar do paroxismo, negando-se-lhe no último momento, aceitando-lhe as prendas e o dinheiro, desaparecendo inesperada e sistematicamente da sua vista, da sua vida - para reaparecer depois, por coincidência, com toda a tranquilidade, sem qualquer medo. De nada: «Nem da morte», como afirma Don Mateo.


O título, ou melhor, os títulos, tanto o do livro como o do filme, são enganadores: porque, porventura, o que vemos é muito mais do que o ludíbrio e a manipulação do homem por uma mulher, ou a redução da mulher à figura do demoníaco: Luís de Almeida de Eça, que apresentou o filme e falou dos livros, apresentava uma leitura particularmente interessante: a questão é a do radical choque entre o feminino e o masculino; é a de uma diferença que seria da ordem da incompatibilidade: homem e mulher não desejam nem amam da mesma maneira. E, portanto, em última análise, acerca da impossibilidade do amor.

É, em todo o caso, um livro no masculino: a mulher não é o diabo, mas um ser incompreensível, inalcançável, pura liberdade; o homem não é o fantoche, mas o predador cego de desejo, sem subtileza, frequentemente brutal. Sobretudo, não é uma vítima, se nos lembrarmos do que impele a história: a sua tentação e tentativa de conquista de uma mozita.

1 comentário:

Zé alberto disse...

"homem e mulher não desejam nem amam da mesma maneira."

Esta sua conclusão, neste texto que tanto gostei de ler, suscitou-me a recordação de um aforismo da Agustina que se encontra citado no último post que coloquei no blog:

«O abismo do entendimento entre o homem e a mulher radica no facto de que para a mulher o sexo é uma verdade. Quanto ao homem, ele nunca encarou a verdade como qualquer coisa impossível de ser mudada.»

Abraço.