domingo, 1 de maio de 2011

DINIS MACHADO: O QUE DIZ MOLERO. MÁRIO ZAMBUJAL: CRÓNICA DOS BONS MALANDROS


Para além dos livros portugueses que definiram um trilho na literatura - alguns dos escritores do século XIX, muitos dos inovadores do nosso tempo -, há duas obras estranhíssimas que vingaram por uma improvável constelação de razões. Não pretendiam ser livros «intelectuais», mas a verdade é que se tornaram objectos de culto, com um certo impacto na intelligentzia da época; não tinham a intenção de levar a cabo nenhuma revolução literária, mas levaram-na pela originalidade com que transformavam pequenos malandros em protagonistas; não se propunham ser lidos como tratados de psicologia ou de sociologia, mas captaram deliciosamente a dinâmica de caracteres e de grupos, valores, a história recente (ou a evocação da infância perdida) e a inventividade portuguesas. Transformaram-se em ícones, passaram ao teatro e ao cinema. Representam, no entanto, mais do que uma época: são, ambos, obras incontornáveis da cultura portuguesa. Um deles é O Que Diz Molero, de Dinis Machado. Foi, dos dois, muito sinceramente, o livro que levou mais tempo a conseguir-me. Gabavam-mo e eu tentava entrar, mas ficava sempre à porta das primeiras páginas. Parecia-me uma torrente de memórias e referências sem passagens, nem critérios ou fronteiras: um autêntico desabamento; referiam-se ao seu humor negro e certeiro, aos impagáveis diálogos que António Feio e José Pedro Gomes recuperaram para o teatro, mas não chegava a nenhum ponto que me parecesse particularmente engraçado. Até um dia.
Porquê? Sabemos explicar? Por que razão uma obra que nos volta repetidamente as costas, um dia se mostra disponível para nós? (Parece-me óbvio que, às vezes, não se trata da disponibilidade do leitor para o texto, mas do contrário); o facto é que, um dia, não entrei no livro; foi mais do que isso: escorreguei, como se viesse por um escorrega abaixo. E recordo-me de estar no metropolitano a rir, um pouco embaraçado, temendo que reparassem em mim. Encontrei tudo o que me prometiam. E mais, muito mais.

*

O outro é Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal. E se de Zambujal, para mim, nenhum outro romance é sequer lembrável, esta crónica acerta em cheio no coração do espírito lusitano, à volta de um grupo que, como crime, quer planear aquilo de que ninguém mais se lembraria, e nutre um puro horror pelas armas ou pelo sangue. Muito do melhor que se escreveu em Portugal tem que ver com isto: um certo tom cómico, mas que não deixa de passar pelas tristezas, apontar os desamores e, sobretudo, preferir como arma fatal o gume da ironia. António Vitorino d'Almeida, o maestro, faz isso no romance da sua autoria que prefiro (não Coca-Cola Killer, by the way, mas o praticamente desconhecido Um Caso de Bibliofagia), remontando à graça de todo o Eça e de algum Camilo. (Ou do injustamente esquecido André Brun). É uma ironia tingida de melancolia, que, aliás, hoje se tende a perder um pouco: está ali. Na Crónica. Dos Bons Malandros. Isto é: na crónica de nós próprios, em certa medida, afinal.

2 comentários:

Zé alberto disse...

Gostei muito de ler o seu post, pelo contributo que representa para o leitor se aperceber das maravilhas literárias que vão sendo produzidas neste país em que as pessoas se deixam absorver tão fácilmente pelo que se produz para lá da fronteira.

Teresa disse...

CREDO! Será desta que vou ler O Que Diz Molero? É que também nunca consegui passar das primeiras páginas, dorme numa das prateleiras mais altas da estante.

Já a Crónica dos Bons Malandros, que leitura delirante! Lembro-me de o ter lido de jacto, só consegui apagar a luz quando cheguei ao fim.