Há dois pormenores que me levariam a aproximar-me quase necessariamente desta obra.
Em primeiro lugar, o autor é um escritor indiano formado na cultura e na língua anglo-saxónicas, e que retira, de ambas as esferas, o mais rico e o mais interessante: uma criatividade mitológica e pagã, um espírito de observação subtil e minucioso, uma superabundância de vozes sagradas segredando-lhe aos ouvidos e uma disciplina do cepticismo e da frieza, num cruzamento que se realiza sob um humor quase desapiedado. O próprio V. S. Naipaul é um outro e flagrante exemplo dessa ligação de fontes que, num escritor talentoso, abre caminhos que raramente são negligenciáveis.
Em segundo lugar, o romance que aqui quero mencionar é um grande romance, no sentido, desde logo, da sua extensão: A Suitable Boy, Um Bom Partido na tradução portuguesa, em 3 volumes, é uma daquelas sagas familiares que precisamos de tempo, muito tempo, para ler, habituando-nos a personagens com as quais passamos a conviver num registo quase quotidiano, cujas qualidades e defeitos principiamos a conhecer na sua consistência, cujos rumos pessoais e laços inter-pessoais seguimos com gosto ou tristeza, surpreendendo-nos ou lamentando-os.
Nestas quatro famílias, os Mehra, os Kapoor, os Khan e os Chatterji, revelam-se protagonistas que reflectem a luta entre uma Índia antiga, tradicional, eterna, nas suas crenças e nas suas estratégias de manutenção de privilégios, e uma Índia jovem, em choque com um sistema de castas que se impõe como um destino. Lata, precisamente, é uma jovem que vai sendo desenhada nos seus contornos dilemáticos, que não poderíamos reduzir, senão abusivamente, à «rebeldia»: na verdade, é sob o signo de um amor que não coincide com as conveniências nem com a decisão familiar previamente negociada, que nos apercebemos da sua fragilidade e da sua inteligência, das suas hesitações e escolhas, sempre entre forças contrárias, igualmente avassaladoras.
Desde a dedicatória que este romance, bebendo nos modelos dos mestres, os refaz, contudo, com uma espantosa originalidade. E se a dedicatória pode ser um bom exemplo, então não resisto a citá-la:
«UMA PALAVRA DE AGRADECIMENTO
A todos quantos de mim são credores
De inúmeras dívidas onerosas:
Vós, musas minhas, cruéis e bondosas;
Meus bons pais, que mil zangas e humores
Sem queixas me sofrestes, não esqueci;
Tribunos mortos, cujas orações
Pilhei para compor minhas libações;
Todos vós, cujas mentes espremi
Sem dó, porque do tormento refém;
Tu, alma tonta, que com parco quinhão
Te bastaste para urdir esta ficção;
E tu, leitor, donde todo o lucro vem:
Comprai-me antes que o siso prevaleça,
Vos mirre a bolsa e o pulso desfaleça.»
2 comentários:
Prezado José Pacheco: creio que fui um tanto desastrada em minhas ponderações sobre o narrador no outro post, exercendo demais minha condição de leitora, condição aliás de que a bela dedicatória acima não esquece. Mas talvez tenha me faltado, no afã de comentar, o "espírito de observação subtil e minucioso", que nem sempre tenho quando a questão me diz, de alguma forma, respeito. Ficam aqui então registradas minhas desculpas.
Sempre tive um jeito meio falante quando o assunto me interessa, mas regularmente me esqueço, no caso da blogosfera, que não estou na sala de aula ou numa palestra discutindo com meus professores. Desse esquecimento surgem por vezes situações que certamente decorrem do ímpeto de falar, discutir, debater a questão, tão-somente.
Li o comentário ao outro post primeiro do que este. Reafirmo o que lhe disse: esteja à vontade. Qualquer comentário seu, Mariana, é, como agora está na moda dizer-se em Poertugal, uma «mais-valia». E uma coisa: uma leitora como a Mariana faz-me pensar, acrescenta - não comenta por comentar. E é muito bem-vinda.
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