terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O NARRADOR: MARCEL, WATSON, PEDRO


O narrador é uma figura cheia de possibilidades. [Só José Saramago, coitado - e perdoem-me a heresia - não percebeu isso. E ganhou um prémio Nobel sem o ter percebido...].

Deste ponto de vista, Proust é inultrapassável. [E, claro, como lembra Mariana, está implícito nesta afirmação um juízo de gosto...] Um narrador que, ao longo de sete volumes, se engana na sua visão, enuncia certezas que mais adiante terá de rever, apresenta leituras que há-de corrigir, é o mais brilhante dos narradores: um narrador que vai crescendo e amadurecendo, que vai reajustando e refazendo, a quem falta a omnipotência porque está mergulhado, de alguma forma, na história que trata de contar, ciente de que essa história, que conta, o conta também a si, e que se fazem um ao outro conjuntamente, e conjuntamente se corrigem um ao outro.

Lembro-me de um romance policial de Ellery Queen que, neste particular ponto, me marcou extraordinariamente. O detective Queen debruça-se sobre uma narrativa inédita, escrita pelo Dr. Watson - (Sherlok Holmes é, pois, o protagonista). E quando, no fim do texto, é apresentada a solução do crime, Watson está ufano, glorificando a inteligência de Holmes. Todavia, Watson está equivocado. O leitor Queen - de quem, por sua vez, nós somos agora leitores - segue o texto com muita atenção, e percebe, não só que Watson nada entendeu, como que Sherlok Holmes, aceitando sacrificar o criminoso errado, está, no fundo, perfeitamente consciente do erro. É um engano pérfido, conveniente - mas Sherlok Holmes, ao longo do texto, faz afirmações que permitem perceber que está a laborar em erro. Fá-lo deliberadamente: vaidoso como é, não consegue não deixar indícios, pistas, outras possíveis interpretações. Para que se saiba que há um engano, mas ele não se enganou. Em todo o caso, a verdadeira solução poderia ficar para sempre recalcada, se o texto de Watson, o narrador estúpido, não fosse lido por Ellery Queen, o leitor mais inteligente do que o narrador, que vê, através do narrador, o que ao narrador escapou.

No romance que escrevi - e que, aparentemente, dizem-me, está sendo negligenciado pelas próprias livrarias que o aceitaram e escondem, mas que fazer? -, salvaguardando as devidas distâncias, foi também o que procurei: um narrador, Pedro, muito próximo das personagens sobre que fala e que, porventura, não vê objectivamente. Gosto da ideia de um romance em que os leitores possam perguntar: Mas esta perspectiva não pode ser uma ilusão de óptica? A verdade não estará, algures, numa interpretação que o narrador nunca foi capaz de fazer...?

A omnisciência esgota-me.

4 comentários:

Mariana disse...

Bem, não vou questionar a afirmação "Proust é inultrapassável" no que concerne à ausência de onisciência do narrador. Ela pressupõe um juízo de gosto, junto ao juízo de valor. Mas me permito fazer algumas considerações sobre a figura do narrador, que estudei no mestrado.

À parte as leituras teóricas sobre ponto de vista e foco narrativo, estudei a questão em Guimarães Rosa. E na literatura brasileira temos três casos exímios de criadores que puseram o narrador sob suspeita: Machado de Assis (para quem o crítico Roberto Schwarz criou a expressão "narrador volúvel", no caso de "Memórias póstumas de Brás Cubas", um caso de genialidade, esse romance), Guimarães Rosa, cujo romance "Grande sertão: veredas" (outra obra genial) é o tempo todo o narrador se interrogando, e interrogando o leitor (de forma que a ambiguidade sobre o diabo não se resolve), o que se passa também nos contos, e a Clarice Lispector, que levou isso a extremos.

A literatura contemporânea brasileira herdou essas conquistas. De forma que aprendemos todos a desconfiar do narrador depois que lemos, mal ou bem, o Roberto Schwarz, e fizemos uma ou duas disciplinas de mestrado.

Mas eu de fato fiquei intrigada foi com outra coisa: a afirmação sobre o Saramago. Li pouco dele, mas nunca havia parado para pensar sobre o narrador de "Memorial do convento", por exemplo.

Perdoe-me a intromissão, mas é que esse é um assunto que estudei um tanto para escrever minha dissertação de mestrado.

P.S. Sobre a relação das livrarias com o seu livro, não destoa do perfil mercadológico que elas vêm adotando. Conheço vários casos de livros parados em livrarias ou tais.

Mariana disse...

Prezado José Pacheco, creio que exagerei em minha digressão: o que queria saber mesmo é apenas o porquê de sua fala sobre o narrador de Saramago. Obrigada.

josépacheco disse...

Não exagerou coisa alguma, Mariana, e muito lhe agradeço os apontamentos. Concordo perfeitamente, aliás, com o que diz, nomeadamente a propósito de Machado de Assis. (No caso de uimarães Rosa não tinha pensado). Em relação a Saramago: não só, em geral, me parece que ele aposta numa visão omnisciente (o seu narrador critica e discute, chama filho da puta a Deus, nomeadamente, mas nunca se põe a si mesmo em causa), como a sua própria tese acerca do narrador é estranha. Saramago defendia explicitamente que a própria figura do narrador é inexistente. O narrador é sempre o autor - um autor absolutamente sapiente. Repare que os narradores de que desconfiamos são, de algum modo, personagens: tomam parte na história e, portanto, percebemos onde e por que falham, onde e por que não podem ser objectivos. Se se recusa esse narrador «envolvido», o que resta é um olhar que se não expõe a si mesmo, invulnerável, pairando sempre um pouco acima da história. Não se percebe de onde vem, nem que falhas o ferem. Gosto sempre muito de todas os seus comentários. Não podia ser mais sincero: os curtos, os longos e digressivos, os que se desviam, os que vão ao centro. Todos!

Mariana disse...

Nunca havia lido o Saramago por essa ótica, do narrador onipotente ou inexistente. O narrador, para mim, sempre existe, seja em primeira pessoa, seja em terceira pessoa. Mas mesmo no caso da terceira pessoa, ele é falível.

Preciso voltar a pensar melhor essas questões. Ensinaram-nos tanto a desconfiar do narrador que eu desconfio de todos, em primeira ou terceira pessoa, mesmo os supostamente ausentes. Mas nunca havia parado para pensar no Saramago nesses termos. Obrigada pela indicação, e pelo espaço para a discussão.