O narrador é uma figura cheia de possibilidades. [Só José Saramago, coitado - e perdoem-me a heresia - não percebeu isso. E ganhou um prémio Nobel sem o ter percebido...].
Deste ponto de vista, Proust é inultrapassável. [E, claro, como lembra Mariana, está implícito nesta afirmação um juízo de gosto...] Um narrador que, ao longo de sete volumes, se engana na sua visão, enuncia certezas que mais adiante terá de rever, apresenta leituras que há-de corrigir, é o mais brilhante dos narradores: um narrador que vai crescendo e amadurecendo, que vai reajustando e refazendo, a quem falta a omnipotência porque está mergulhado, de alguma forma, na história que trata de contar, ciente de que essa história, que conta, o conta também a si, e que se fazem um ao outro conjuntamente, e conjuntamente se corrigem um ao outro.
Lembro-me de um romance policial de Ellery Queen que, neste particular ponto, me marcou extraordinariamente. O detective Queen debruça-se sobre uma narrativa inédita, escrita pelo Dr. Watson - (Sherlok Holmes é, pois, o protagonista). E quando, no fim do texto, é apresentada a solução do crime, Watson está ufano, glorificando a inteligência de Holmes. Todavia, Watson está equivocado. O leitor Queen - de quem, por sua vez, nós somos agora leitores - segue o texto com muita atenção, e percebe, não só que Watson nada entendeu, como que Sherlok Holmes, aceitando sacrificar o criminoso errado, está, no fundo, perfeitamente consciente do erro. É um engano pérfido, conveniente - mas Sherlok Holmes, ao longo do texto, faz afirmações que permitem perceber que está a laborar em erro. Fá-lo deliberadamente: vaidoso como é, não consegue não deixar indícios, pistas, outras possíveis interpretações. Para que se saiba que há um engano, mas ele não se enganou. Em todo o caso, a verdadeira solução poderia ficar para sempre recalcada, se o texto de Watson, o narrador estúpido, não fosse lido por Ellery Queen, o leitor mais inteligente do que o narrador, que vê, através do narrador, o que ao narrador escapou.
No romance que escrevi - e que, aparentemente, dizem-me, está sendo negligenciado pelas próprias livrarias que o aceitaram e escondem, mas que fazer? -, salvaguardando as devidas distâncias, foi também o que procurei: um narrador, Pedro, muito próximo das personagens sobre que fala e que, porventura, não vê objectivamente. Gosto da ideia de um romance em que os leitores possam perguntar: Mas esta perspectiva não pode ser uma ilusão de óptica? A verdade não estará, algures, numa interpretação que o narrador nunca foi capaz de fazer...?
A omnisciência esgota-me.
4 comentários:
Bem, não vou questionar a afirmação "Proust é inultrapassável" no que concerne à ausência de onisciência do narrador. Ela pressupõe um juízo de gosto, junto ao juízo de valor. Mas me permito fazer algumas considerações sobre a figura do narrador, que estudei no mestrado.
À parte as leituras teóricas sobre ponto de vista e foco narrativo, estudei a questão em Guimarães Rosa. E na literatura brasileira temos três casos exímios de criadores que puseram o narrador sob suspeita: Machado de Assis (para quem o crítico Roberto Schwarz criou a expressão "narrador volúvel", no caso de "Memórias póstumas de Brás Cubas", um caso de genialidade, esse romance), Guimarães Rosa, cujo romance "Grande sertão: veredas" (outra obra genial) é o tempo todo o narrador se interrogando, e interrogando o leitor (de forma que a ambiguidade sobre o diabo não se resolve), o que se passa também nos contos, e a Clarice Lispector, que levou isso a extremos.
A literatura contemporânea brasileira herdou essas conquistas. De forma que aprendemos todos a desconfiar do narrador depois que lemos, mal ou bem, o Roberto Schwarz, e fizemos uma ou duas disciplinas de mestrado.
Mas eu de fato fiquei intrigada foi com outra coisa: a afirmação sobre o Saramago. Li pouco dele, mas nunca havia parado para pensar sobre o narrador de "Memorial do convento", por exemplo.
Perdoe-me a intromissão, mas é que esse é um assunto que estudei um tanto para escrever minha dissertação de mestrado.
P.S. Sobre a relação das livrarias com o seu livro, não destoa do perfil mercadológico que elas vêm adotando. Conheço vários casos de livros parados em livrarias ou tais.
Prezado José Pacheco, creio que exagerei em minha digressão: o que queria saber mesmo é apenas o porquê de sua fala sobre o narrador de Saramago. Obrigada.
Não exagerou coisa alguma, Mariana, e muito lhe agradeço os apontamentos. Concordo perfeitamente, aliás, com o que diz, nomeadamente a propósito de Machado de Assis. (No caso de uimarães Rosa não tinha pensado). Em relação a Saramago: não só, em geral, me parece que ele aposta numa visão omnisciente (o seu narrador critica e discute, chama filho da puta a Deus, nomeadamente, mas nunca se põe a si mesmo em causa), como a sua própria tese acerca do narrador é estranha. Saramago defendia explicitamente que a própria figura do narrador é inexistente. O narrador é sempre o autor - um autor absolutamente sapiente. Repare que os narradores de que desconfiamos são, de algum modo, personagens: tomam parte na história e, portanto, percebemos onde e por que falham, onde e por que não podem ser objectivos. Se se recusa esse narrador «envolvido», o que resta é um olhar que se não expõe a si mesmo, invulnerável, pairando sempre um pouco acima da história. Não se percebe de onde vem, nem que falhas o ferem. Gosto sempre muito de todas os seus comentários. Não podia ser mais sincero: os curtos, os longos e digressivos, os que se desviam, os que vão ao centro. Todos!
Nunca havia lido o Saramago por essa ótica, do narrador onipotente ou inexistente. O narrador, para mim, sempre existe, seja em primeira pessoa, seja em terceira pessoa. Mas mesmo no caso da terceira pessoa, ele é falível.
Preciso voltar a pensar melhor essas questões. Ensinaram-nos tanto a desconfiar do narrador que eu desconfio de todos, em primeira ou terceira pessoa, mesmo os supostamente ausentes. Mas nunca havia parado para pensar no Saramago nesses termos. Obrigada pela indicação, e pelo espaço para a discussão.
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