sábado, 1 de janeiro de 2011

GEORGE ORWELL: HOMENAGEM À CATALUNHA

Os portugueses são assim. Pode parecer politicamente incorrecto associá-los para sempre a uma natureza tão pouco promissora, reconhecível em clichés como o do improviso e o do desenrascanço - que nunca se entende se são males, se virtudes -, a impotência para a pontualidade, o engenho para o negócio da China. Talvez uma outra educação, uma profunda reforma de mentalidades, uma revolução a sério os mudasse. Que sei eu? E talvez haja uma espécie de felicidade mesquinha nessa condição, que não apeteça transformar.

Também os espanhóis são um povo cuja definição se faz em torno de um certo número de clichés - alguns muito semelhantes aos lusos, outros contrários, como se nós fossemos a parte melancólica e humilde de uma península exuberante e arrogante. Mas o facto é que os clichés sobre esse povo se vão confirmando de cada vez que fazemos uma viagem aqui ao lado, entramos numa loja ou em um restaurante madrilenos, conversamos com um indígena de Espanha.

Homenagem à Catalunha é um livro muito interessante, porque reúne diversas imperdíveis riquezas. Tomando posição na guerra civil de Espanha, George Orwell, do lado das forças anti-franquistas, vai registando as suas observações naquilo que será, por um lado, um documento fundamental, do ponto de vista histórico, para compreendermos o xadrez internacional que se projectava e reflectia ali, então; para compreendermos os movimentos e decisões de Franco, no horizonte de uma guerra mais vasta, entre Estaline e Hitler; mas, sobretudo, para compreendermos as características tipicamente espanholas que, em Espanha, esta guerra não poderia deixar de absorver. Nessa medida, o livro de George Orwell devém, por outro lado, também um fascinante documento sociológico. Tanto mais que a participação do autor se fará, sobretudo, em regimentos de anarquistas e trotskistas, clarificando o peso e a especificidade do anarquismo espanhol.

Porque em todos os espanhóis vibra um anarquista. Um maravilhoso anarquista. Antes de ser uma questão ideológica, ética ou política, o anarquismo, na sua versão espanhola, principia por ser uma questão de carácter e de maneira de ser. Uma fobia persistente à burocracia, à planificação, porventura à eficácia, uma preguiça latente, um ódio ao sagrado (que não se assusta ante expressões como «Me cago en Diós»), uma irreverência buliçosa, uma falta de controlo, com efeitos perniciosos (pois não se ganha um combate com fuzis que não funcionam ou que podem explodir-nos nas mãos) são, muito mais do que uma convicção fundamentada, traços desta personalidade: aqui, a coragem é tão grande e tão sublime como a falta de sentido prático.

Sou um leitor que saboreia o mínimo pormenor de Homenagem à Catalunha. Mais do que uma análise sobre as razões da derrota da esquerda - que também não deixa de ser -, o livro de Orwell é o livro de um sociólogo leve mas profundo, estimulante, com imenso sentido de humor e uma genuína admiração pelos companheiros de combate com que conviveu («admiração», aliás, nas duas acepções do termo: respeito e espanto).

É, pois, uma homenagem, no sentido mais completo da palavra: aos lutadores corajosos e inábeis, sensatos e loucos, ternos e ferozes: aos paradoxos vivos, sempre dignos, sempre íntegros.

3 comentários:

fallorca disse...

Luis, conhece «Enterrar os Mortos», de Ignacio Pisón?

josépacheco disse...

Não sou Luis, Fallorca, mas José. Não conheço, não conheço: recomenda-mo? Vou pesquisar, entretanto...

fallorca disse...

Desculpe, José :)