A questão das leituras é especialmente complicada.
A mim, parece que é quase impossível que o modo como um leitor interpreta um romance não tenha que ver com um parti-pris ideológico. No sentido lato de «ideológico».
Sobretudo, julgo que uma mulher lê sempre com o que há em si de mulher, um homem como um homem. E podem dizer-me: Raio, que se esperava?
A questão é que ler como mulher significa, de algum modo, julgar as mulheres de um romance. Não sei se os homens também não julgam principalmente as personagens femininas - embora, no seu caso, de uma perspectiva masculina.
O problema é que se espera sempre uma identificação, ou seja: uma leitora aguarda, mais ou menos secretamente, que as mulheres de um romance sejam interessantes, ou que alguma delas o seja: mas o que é ser interessante? E por que teria de haver um modelo, um exemplo, quando no dia-a-dia encontramos pessoas de todos os tipos, interessantes e desinteressantes, e a própria verosimilhança exige que as personagens incorporem diferentes características e defeitos, insuficiências, limitações e manias, independentemente de serem femininas ou masculinas?
Uma leitura «feminista» ou uma leitura «masculinista» excluem, na minha opinião, diversas possibilidades e nuances: por exemplo, a possibilidade de que uma personagem feminina, porventura extraordinária, nos seja apresentada a partir do olhar de uma personagem masculina, que a diminui na sua grandeza; digamos: um marido infeliz e esgotado por muitos anos de relacionamento. Ou, claro, vice-versa. Mas também ao leitor cabe mover-se por entre essas perspectivas ilusórias e redutoras; cabe descobrir o «interesse» ou o «valor» deste ou daquela, para além da visão que (mesmo quando não seja directamente expressa por uma personagem) se percebe que recupera e reconstitui, para efeitos romanescos, a visão dessa determinada outra personagem. [James Wood é nada menos que brilhante nessa análise do ponto de vista que subjaz ao discurso; na análise do «quem realmente fala, aqui? Será mesmo o autor?»]
Não sou melhor leitor do que ninguém. Mas um segredo tenho: não julgo. Farejo com mais interesse as complexidades de carácter e a verosimilhança do que o reconhecimento. E, é verdade, gosto de pessoas impossíveis, aprecio personalidades malévolas e mesquinhas, não enjeito gente superficial ou estúpida, ou reaccionária. Talvez na vida o faça - mas, na literatura, certamente não.
13 comentários:
Esta é de grande malandro. Um abraço
António J
Mas, claro, tu próprio o disseste: eu sou um grande malandro.
Meu bom amigo
Estou de acordo quanto ao modo como cada leitor interpreta o que escrevemos. Acredito que a cultura de cada um marca o sentido da interpretação. Acredito, igualmente, que um ser predominantemente cinestésico tenha uma visão diferente etc etc. Mas de tudo isto o determinante para aquilo que se escreveu é que leiam. Escrevemos e gostamos que nos leiam, nos critiquem, nos mexam na consciência mas leiam. Só assim crescemos. Só assim seremos mais nós e os leitores. Acredito nisto amigo. Acredito que tem de ser assim. Por exemplo vou ficar, como sempre fico, a aguardar a tua reacção ......
António J.
Estou de acordo contigo, é claro. E, em última análise, todas as leituras são legítimas e trazem algo. A única questão é, quanto a mim, que há leituras mais ou menos subtis. Uma leitura que se limita a identificações parece-me menos subtil: esta está de acordo com o meu modelo de mulher, aprovo-a. É como eu, gosto dela. Esta relação tem que ver comigo, aceito-a. E, por outro lado: esta é prostituta, ou trai o marido, ou é pouco inteligente - «Não serve! Não gosto!»; isso parece-me uma leitura que busca unicamente o reconhecimento, a familiaridade, a confirmação das próprias referências, e isso não é usar uma leitura como descoberta. Mas isto sou eu a falar e, naturalmente, não quero impor o meu modo de ler. (Se calhar, até queria. Mas não devia...). Para além disto, interessa, de facto, é que leiam - mal, bem, de acordo, em desacordo, assim-assim!
EIIIIIII PÁRA, pá aí para não surgirem confusões com a leitura do teu livro. Primero as mulheres têm um papel fundamental no forma como desenvolves toda a cena. Depois a Dulce é mesmo «porreiraça» (ACIENTIFICAMENTE ESCREVENDO!!) puxa. Não confundas uma conversa em forma de brincadeira com uma crítica com seriedade. Se a coisa não fosse de qualidade não se brincava. Lembra-te que até referi a falta da descrição de meia dúzia de rapidinhas ou raspadinhas. Quando defendo que leiam digo de forma positiva que entendam o romance. Que consigam fazer uma sintese e recontar o que leram de forma objectiva. Só pode haver uma de duas posições. Gosta ou não gosta. O cinzentismo ou o apolitismo é a forma mais primária de fazer a própria política ou de manifestar ciúme por aquili que outros fazem. Porque outros mostram competência.Têm sabedoria. Eu gosto e de tal modo gostei que divulguei este meu gosto a todos os amigos do facebook..... são centenas que viram e perguntaram onde comprar e a Ana Cristina informou essa parte. Tudo juntinho. Zé António sei bem o sabor do pós lançamento. É uma ressaca muitas vezes surgida pela indiferença de quem julgavamos irem dizer alguma coisa. Se sei mas aqui estou e a sete de Maio aí vai surgir um novo... outro estilo do que costumo escrever. Vou erguer um copo em tua homenagem....
António J.
Compreendido. Mas, primeiro, não estava a falar de ti. E nem sequer do «meu» romance, embora as questões levantadas a propósito do meu romance possas ter sugerido esta revolução. Estou a falar em geral: Ana Karenina, por exemplo, está bem tratada? O outor devia ter-se preocupado em torná-la uma mulher moral ou ideologicamente conveniente? Ou, vá, madame Bovary? Percebes? A questão é geral, é teórica, ultrapassa largamente o que as pessoas acharam ou não das personagens femininas. Repito, isso desencadeou a reflexão, mas não estou preso ao «caso Dulce». Um abraço, pá. E obrigado pela tua generosa contribuição para divulgares a coisa.
queria dizer: «embora as questões levantadas a propósito do meu romance possam ter-me sugerido esta reflexão».
errata: «ultrapassa os que as pessoas acharam ou não da minhas personagens femininas». E, olha, eu percebi a dose de ironia e brincadeira contida nas tuas palavras. Tudo bem, António. Não era, repito, pessoal. Não tem que ver contigo nem tem que ver com Dulce. Abraço.
Tenho grandes recordações de uma jovem chamada Dulce. Açoriana. Colega. Linda de morrer e eu morri e fugi e ainda por aqui ando. Sem querer rever a Dulce. 45 anos depois devem ter surgido transformações. Para a Dulce continua a ser o meu primeiro grande beijo Ai Dulce, Dulce se fugi morto o tempo matou o todo. O que me assusta é se me cruzar já não sei como reconhecer!!!!
AJ
Anônimo,
não desanima, a Dulce vai te reconhecer, sim! Comigo aconteceu de um ex-namorado, após 40 anos sem nos vermos, reconheceu minha voz por telefone!
Um abraço pra você José Pacheco, aqui do Brasil!
As pessoas mudam e acreditar que alguma coisa volta a ser o mesmo pode ser uma grande desilusão.Vale mais viver o presente e guardar o passado com carinho.
Mas o que eu queria perguntar mesmo é como se chama o seu livro?
Eu acredito que aquilo que somos influencia sempre um pouco a maneira de encarar as persongens, mas não quer dizer que só se goste das que se podem aproximar mais de nós.Penso que não.
Isabel
O livro em causa, Isabel, chama-se Nada Mais e o Ciúme. A capa - lindíssima, quanto a mim - é a que está aí na margem esquerda do blogue. Faz o seu caminho em passos miúdos, em poucos lugares por enquanto, que já agora, enuncio: na Livraria Trama, conhece? Extraordinária. Ou na Barata, ambas em Lisboa. Ou na Galileu de Cascais, ou na Letraria de Miraflores, ou na Presença, de Algés. Também em Viseu, na Pretexto. Ou on-line, Sítio do Livro. E, por enquanto, só!
Não conheço nenhuma livraria.
Sou da "probincia".Mas vou pedir a um familiar de Cascais.
A capa é linda ,sim.
Obrigada pela sua resposta.
Até sempre e sucesso com o livro.
Isabel
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