«Estando eu um dia em el Alcaná [rua de Toledo com muitas bancas de mercadores, nota de J.P.] de Toledo, chegou um rapaz a vender uns catrapázios e papéis velhos por uma moeda; e como sou um aficcionado da leitura, mesmo que sejam os papéis rasgados das ruas, levado por esta minha natural inclinação, agarrei num dos catrapázios que o rapaz vendia, e percebi-lhe caracteres que reconheci serem árabes. E como, apesar de os conhecer, não os sabia ler, andei vendo se aparecia por ali algum mourisco aljamiado [isto é, «conhecedor de castelhano», JP] que os lesse, e não me foi muito difícil topar semelhante intérprete, pois mesmo que procurasse um de outra melhor e mais antiga língua, o toparia. Por fim, a sorte fez-me deparar com um, que, dizendo-lhe eu qual era o meu desejo e pondo-lhe o livro nas mãos, o abriu a meio, e lendo um pouco nele, começou a rir-se.
«Perguntei-lhe de que se ria, e respondeu-me que de uma coisa que aquele livro tinha escrita na margem, como anotação. Disse-lhe que ma dissesse, e ele, sem deixar a risota, disse:
«- Está, como disse, aqui na margem escrito isto: "Esta Dulcineia del Toboso, tantas vezes nesta história referida, dizem que teve melhor mão para salgar porcos do que outra mulher qualquer de toda a Mancha".
«Quando ouvi dizer «Dulcineia del Toboso», quedei-me atónito e suspenso, porque logo se me representou que aqueles catrapázios continham a história de D. Quixote. Com esta imaginação, dei-lhe pressa de que lesse o princípio; assim o fazendo, mudando de improviso do árabe para castelhano, disse que dizia: História de don Quixote de la Mancha, escrito por Cide Hamete Benengeli, historiador árabe.»
Mil perdões pela tradução que aqui ouso. Posto isso, vamos ao que importa: delicio-me com este embuste - Cervantes pretensamente revelando, numa determinada passagem do D. Quixote de La Mancha, de que é o autor, como teria descoberto certos «catrapázios» contendo essa história (atribuída, pois, originalmente a um tal historiador Cide Hamete Benengeli). Como o D. Quixote é moderno. Como Cervantes, em 1605, já inventava e usava meios para criar a verosimilhança do seu romance. Como, depois, este recurso veio a ser repetido, ao longo da história da literatura - e nunca se esgotou.
4 comentários:
Moderno, engenhoso e com um refinado sentido de humor :)
aquele "como sou um aficcionado da leitura, mesmo que sejam os papéis rasgados das ruas" falou-me ao ouvido e deu-me vontade de partilhar isto:
http://1.bp.blogspot.com/_0aVl10goKjM/SbAKYhtk_nI/AAAAAAAAAI4/6TGfGmb54e0/s1600-h/respeito+e+piedade+pelos+pap%C3%A9is+impressos.JPG
Retribuo o prazer de o ver lá por casa adicionando-o aos favoritos
E continuação de bom ofício :)
afff kde a lista de obras?
que o comentador anómimo aqui de cime me perdoe e me não leve a mal. mas, sinceramente, não percebi senão «lista de obras». afff e kde são-me estranhos.
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