Não me lembrava muito bem deste livro, sinal de que não terá tido a importância que eu esperava ao comprá-lo. Na altura, fora atrás dele seguindo uma recomendação. O título completo é cativante; leio-o em letras brancas sobre um suculento fundo vermelho: Os Filósofos e o Amor. Amar, de Sócrates a Simone de Beauvoir. Platão Lucrécio Montaigne Rousseau Kant Schopenhauer Kierkegaard Nietzsche Heidegger Arendt Sartre. Prefácio de: Eduardo Lourenço. Mas então, relendo com gosto, um capítulo aqui, um capítulo ali (principio por Kant, salto para Sartre/Beauvoir, regresso a Nietzsche, coitado...), vejo-me assaltado por lembranças que se reconstituem, déjà-vus que se encaixam, e o livro ilumina-se-me no íntimo.
A ideia parece promissora: a filosofia tem tanto que ver com o amor, que nunca esquecemos, desde o liceu, como a própria palavra contém, na sua etimologia, o termo que em grego significa «amor», «inclinação». Sócrates, pelo menos o Sócrates inventado por Platão, que se confunde com a origem e com o destino da filosofia, é um homem que se ocupa obsessivamente com o amor: quer quando o refere (cf. O Banquete) quer, e talvez principalmente, quando evita referi-lo. Mas para além desta primeira ligação entre a filosofia e philia (enquanto impulso de todo o filosofar), mais duas ligações interessaria averiguar: 1. não será que alguns outros filósofos fizeram do amor um tema central? Que tinham a dizer, que disseram sobre ele? E, finalmente: 2. não foi a vida de certos filósofos um testemunho eloquente de amores, interditos ou não, que os ajudaram a pensar essa coisa, ou em que a sua filosofia do amor se reflectiu?
Naturalmente, o perigo de um empreendimento deste género é o da confusão entre a reflexão filosófica sobre o amor e a biografia amorosa de filósofos. Todavia, desde que se previna metodicamente tal confusão, mostrando, pelo contrário, como se não está em face de duas dimensões mutuamente alheias, mas que se interpenetram e influenciam, a obra tem pertinência e sentido. Aliás, essa dialéctica parece-me o melhor do livro: não ignorávamos as inclinações e os casos amorosos de Sócrates; nem a estranha aridez da vida erótica de Kant; nem a trágica paixão de Nietzsche por uma mulher pela qual alguns dos melhores espíritos (com seus respectivos corpos) se apaixonaram também; nem a estranha, tumultuosa e atormentada relação secreta entre Heidegger e Hannah Arendt; ou o tipo particularíssimo de parceria entre Sartre e Simone de Beauvoir. O que vale a pena é pensar essas experiências à luz das interrogações que os moviam, como vivências sobre que reflectiam ou que a sua reflexão de algum modo marcava.
O «casamento» entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir é, a esse respeito, interessantíssimo. A teoria e a prática nem sempre coerentes; o que ambos acordavam e diziam sobre o que era a sua relação, em contraste com o que terceiros dela disseram; a própria diferença entre o que cada um afirmava e aquilo que secretamente desejava (e viria a lume em cartas só posteriormente conhecidas) obrigam-nos a estar conscientes dos riscos da obra de Aude Lancelin e Marie Lemonnier: algo que a qualquer momento poderia resvalar para uma espécie de literatura cor-de-rosa, a palpitar de revelações chocantes sobre os famosos - mas que, na medida em que evita cuidadosamente as armadilhas da facilidade, só pode tornar-se um fascinante livro: trata-se, afinal, de mostrar como o amor foi vivido e pensado, pensado e vivido, ao logo do tempo, por pensadores dotados de corpo. A filosofia não é necessariamente uma ascese. E, no sentido que hoje atribuímos à palavra, Platão não era seguramente platónico. [P.S: a propósito do corpo: o que eu tinha em mente é que o amor é sempre físico, ainda que não seja erótico ou sexual. Existe um corpo que, olhando carinhosamente o amigo (ou pai, ou mãe), olha no fundo um outro corpo; é o meu rosto que sorri à minha filha, é a minha mão que lhe afaga os cabelos...]
2 comentários:
Guimarães Rosa, que leu os filósofos, diz coisas sublimes sobre o amor, mas também simples, o que não deixa de passar a sensação de um estranho paradoxo. A Clarice Lispector diz coisas que eu raramente entendo. Os poetas sempre falam, com maior ou menor presença do corpo. Sem contar que há o amor fraterno, com o nome de amizade, e as paixões. É o sentimento mais confuso e complicado para mim, mas a observação é boa amiga. Foi por meio dela, por exemplo, que o narrador do conto "O espelho", de "Primeiras estórias", chegou a estranhas e curiosas descobertas sobre si mesmo, e não deixou de associá-las estreitamente ao amor:
“São coisas que não se devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?” (Primeiras estórias, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 72.)
Também aqui: “Só o amor em linhas gerais infunde simpatia e sentido à história, sobre cujo fim vogam inexatidões, convindo se componham; o amor e seu milhão de significados." (ROSA, João Guimarães. Palhaço da boca verde. ___. Tutaméia: terceiras estórias. 8.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.169).
Tudo muito bonito, mas... literatura e vida traçam entre si relações, fios e tecidos que às vezes só a distância e o tempo deixam entrever bem. E perdão se venho com literatura num post tão bonito sobre amor e filosofia, mas é o que tenho.
tudo se se liga, conecta, abraça, comunica - não concebo também filosofia sem literatura e, sobretudo, sem poesia (tal como estas, sem aquela...); o seu comentário está excelente, cheio de pistas e de possibilidades, como sempre.
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