segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

MEMÓRIAS COLONIAIS





Nem de propósito.

Tendo escrito, no post anterior, a propósito de O Leopardo, acerca da ambivalência própria de toda a revolução - em que é demasiado fácil ver-se unicamente o que se perdeu, ou, pelo contrário, o que se ganhará, em recortes ideológicos estreitos, que impedem a compreensão simultânea do que se perde e do que se ganha -, venho agora falar sobre um outro livro, que me remete para o mesmo problema. É o exemplo de uma abordagem contrária àquela que O Leopardo consegue. Diria, o exemplo da forma "errada" (porque parcial) de entender o que se passou. Chama-se Cadernos de Memórias Coloniais. Escreveu-o Isabela Figueiredo.

Hesitei muito. Por um lado, porque este é um blogue onde, sobre os livros, se tem uma preocupação eminentemente literária; ora pergunto-me se a crítica que me apeteceria fazer não será mais política e ideológica do que outra coisa; por outro lado, porque sendo eu mesmo moçambicano de nascimento, tendo vivido em Lourenço Marques, nos mesmos sítios, durante o mesmo tempo que o texto vai fragmentariamente rememorando - ter-nos-emos cruzado alguma vez, Isabela e eu? -, mas não coincidindo com ela no teor da memória nem na interpretação dos factos, não correrei o risco de ser injusto? De me faltar distanciamento crítico? De responder às memórias da autora, com tudo o que nelas é pessoal e legítimo, com a divergência das minhas memórias, igualmente legítimas, igualmente pessoais?

Corro o risco.

Numa crítica do Expresso, alguém escrevia, há umas semanas, que estes «cadernos» seriam decisivos. Porque poriam os pontos nos ii: revelariam o colonialismo moçambicano na sua dureza, na sua crueldade - contra uma visão nostálgica, muito propagada, segundo a qual a opressão teria sido, aí, mais meiga e gentil, mais evoluída e bondosa. Um colonialismo completamente diferente do inglês? Pelos vistos, não foi. Ou, como a própria afirma, talvez diferente, dificilmente melhor.

Claro que opressão é opressão. Não existem opressões mais ou menos meigas, mais ou menos gentis. Não existe opressão boa. A contradição nos termos soa ridícula. Mas a minha primeira objecção é a de que, redutoramente, Isabela faz, de um ajuste de contas com o seu pai, um ajuste de contas com todo o passado moçambicano. Traiu o pai, como continuamente repete? Assunto seu. Não me cabe julgá-la. Mas que o seu olhar crítico sobre o pai e sobre a relação entre ambos (que terá ficado totalmente por resolver), seja a única medida do que foi o Moçambique dos anos sessenta e setenta, parece-me, naturalmente, a assunção de uma lente redutora.

Há erros factuais. Pormenores desacertados que servem para nos mostrar como a memória é elástica, deturpadora, subjectiva.

Mas, em primeiro lugar, por que descontextualizar? Vivia-se, então, em Portugal, o tempo do singular fascismo português. E, mesmo já sob o marcelismo, a «metrópole» permanecia um espaço canhestro e fechado, generalizadamente inculto e pobre. O colonialismo não podia deixar de ser, com todas as suas desigualdades e injustiças, senão uma expressão de um regime feito de censura e medo da evolução.

Contudo, em mais do que um aspecto, Moçambique tornar-se-ia a ponta mais evoluída do icebergue que era Portugal; o meio da formação de uma autêntica vanguarda - política, artística, cultural no sentido mais lato. De algum modo, por exemplo - e à semelhança do que ocorrera, ou ocorria, nos EUA, por causa do Vietname -, também ali se criava, entre os jovens estudantes em idade de ser chamados para a o serviço militar, um espírito de rebeldia e contestação.

E surgiam, é claro, jornais e revistas modernos, de reflexão e crítica. (Chegou a haver projectos, desenvolvidos por colonos, em que se propunha o fim da censura, o que, na «metrópole», estava longe de se idealizar); e jornalistas, escritores, poetas, pintores, fotógrafos, de várias raças - José Craveirinha, Albino Magaia, Kok Nam, o próprio Mia Couto, que tão popular viria a ser mais tarde, Rui Knopfli, Malangatana Valente, os extraordinários irmãos Honwana -, que expressavam uma nova visão, um novo ideal, em linguagens que eram já outras, por onde perpassavam a voz do povo e a luta contra a opressão.

Isabela não via, não ouvia, não sentia, não pressentia? Por criança que fosse, deste mundo complexo e em ebulição, contraditório e estranho, evoluindo e abrindo-se (embora contendo ainda, em si, a infecção, a injustiça, a desigualdade e a exploração), Isabela nada captou? Não tinha olhos senão para os «brancos que iam às pretas», como se a isso pudesse, hoje, reduzir o painel do pior e do melhor que eram aquela vida e aquela realidade culturais? Não estava senão com o pai diante dos seus olhos, esse pai enorme, que agredia os seus empregados, na hora do pagamento? Ou que os ia buscar às casas pobres, em caniço, para que não faltassem ao trabalho, aos murros e aos gritos?

Como esquecer, por exemplo, que os mais consistentes militantes da Frelimo, Samora Machel, Graça Simbine, Aquino de Bragança, Joaquim Chissano - tinham sido formados por professores portugueses, ou nas escolas dos missionários católicos e protestantes? Não o refiro como justificação do colonialismo, evidentemente, mas como observação de que, no seu melhor, este ensinou, formou, construiu, pensou, criticou, criou.

«Ainda hoje os vejo envolvidos na mesma nostalgia. "A independência foi mal feita, e os culpados foram o Mário Soares e o Almeida Santos, que nos venderam e entregaram aos pretos". Eu traduzo, "aquilo que entregaram aos pretos deviam tê-lo entregue a nós, que logo tratávamos da negralhada". Quando revelam, com lágrimas sinceras, "deixei o meu coração em África", eu traduzo, "deixei lá tudo, e tinha uma vida tão boa".».

Percebemos o problema de má tradução: Isabel Figueiredo faz, de um sector, a voz de um todo - um todo mais difícil e variegado do que alguma vez a sua memória poderá entender.

Dirá, numa entrevista incluída no livro: «O colonialismo era o meu pai».
Aí radica, porventura, o seu erro crasso de perspectiva. Lamento contrariá-la, Isabela. Não era.

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