Salinger é o autor de um único livro. Não porque não tenha escrito e publicado outros, mas porque, na minha perspectiva, depois de se ter feito a obra perfeita - que é aquilo que Catcher in the Rye precisamente é -, se torna difícil escrever alguma coisa que lhe não seja inferior.
Admiro os escritores de obras únicas que são obras-primas. Emily Brönte, de que já aqui falei, é outro caso. Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor de Il Gattopardo, é claro, também.
O Leopardo, que permaneceu impublicado durante muito tempo, recusado por inúmeras editoras (o que não deixa de ser um extraordinário exemplo de ignorância e cegueira), só viria a público após a morte do autor. Nada menos do que um ano e meio após a sua morte. Mas, então, para ganhar o merecido reconhecimento a que, mais tarde, o filme de Luchino Visconti (com Burt Lancaster e Alain Delon) emprestaria a imagem definitiva.
Romance construído numa escrita delicada, complexa, belíssima, O Leopardo descreve as perturbações sofridas, numa Sicília há muito imutável, por uma família aristocrata, abastada, submetida à revolução: as personagens não são lineares, as ideologias não são lineares. Perante a implantação de uma nova ordem, percebemos tanto as insuficiências humanas da anterior, como o oportunismo corroendo, desde o início, os ideais da que chega: o arrivismo, a inveja, a incompetência ou o ressentimento, os quais seriam, por dentro da justiça e da justeza da Causa do progresso, parte do seu motor prático; percebemos como o velho regime, decadente e injusto (ou não haveria revolução), desaparecerá levando consigo, porém, um refinamento de maneiras e cultura que não poderão regressar tão cedo. Porque de tudo, do bom e do mau, se faz uma revolução.
Não podemos amar Don Fabrízio, Príncipe de Salina, que não é amável, isto é, não se deixa amar, nem tão-pouco odiá-lo na sua grandeza um pouco assustadora, aparentemente inflexível, embora, de algum modo, tentando ceder e negociar - segundo o maquiavélico princípio que hoje tão bem conhecemos, e constantemente confirmamos: «É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.»;
É com uma profundidade sem preconceitos que travamos conhecimento com uma figura psicológica plena de contrastes e de contradições, sua esposa, a Princesa, que, sob a fragilidade esperada, esperável, ou sob o medo e o desprezo pelo sexo brutal do Príncipe, oculta uma força própria e uma sabedoria fulgurantes; ou com Tancredi, o sobrinho gastador, corajoso e insensato; ou o Padre Pirrone, filósofo e conselheiro mas, paradoxalmente, amante da boa vida que aquela família lhe proporciona; bem!, e que dizer de uma personagem secundária mas, todavia, essencial enquanto símbolo do novo Poder - o Presidente da Câmara, pai, se bem me lembro de uma rapariga lindíssima, que irá ser o centro de uma paixão devastadora?
É o ajustamento, ao novo tempo histórico, da austera família de Don Fabrízio e da rede que ela teceu e manteve ao longo de séculos, o que acompanhamos por estas páginas dolorosas, irónicas e melancólicas.
Teria de ser o único livro do autor. Aliás, é um livro historicamente único, também: e na sua visão imparcial e completa de uma revolução, entre a consciência de como o progresso é um ganho inevitável, e a intuição trágica de que algo fundamental terá de se perder, continuará sendo um livro único.
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