Não se trata de uma redução. Mas, para se compreender melhor, em português, qual a atmosfera que impregna a sua obra, poderíamos pensar numa síntese de Bocage e de Fernando Pessoa.
De Bocage, temos a linguagem grosseira e popular, que não recua diante dos termos obscenos, sobretudo quando se trata de escrever sobre os órgãos ou o acto sexuais.
De Pessoa, temos, antes de mais, a vida do próprio: um burocrata com emprego fixo e horários estritos; um manga-de-alpaca que esgota a sua vida no escritório de uma dessas ruas típicas da cidade em que vive, mas que, na poesia, secreta, inspirada e inesperadamente, adquire toda a sua força e sentido. De Pessoa temos, pois, essa semelhança biográfica, mas não só: uma contenção avessa a delírios românticos, a arroubos líricos, que achou a forma mais apurada num dos heterónimos pessoanos, Alberto Caeiro.
E que obtemos? Philip Larkin.
Vou folheando os poemas de High Windows, e onde outros leram a pose reaccionária e uma espécie de desprezo pelo feminino, eu leio uma candura de adolescente para quem tudo é perigoso e, ao mesmo tempo, invejável. Vejo Holden Caulfield, a personagem (e narrador) de The Catcher in the Rye, com o seu azedume e a sua brutalidade, sob os quais tange uma sensibilidade em ferida e uma intensa carência.
É uma poesia completamente diferente da que conhecemos. (Mau grado tantos imitadores). Mostra-nos o absurdo do quotidiano sob o modo de uma lista de pequenos nadas monótonos e sem brilho. Os gestos mais simples tornam-se objecto de enunciação: espreito namorados, ou olho para uma janela, ou ponho pedras de gelo num copo com "três doses de gin, limão em rodela,/Mais um quarto de tónica [...]".
Mas se, de facto, esta poesia se debruça sobre o dia-a-dia, denunciando-o na sua dimensão mais superficial e vazia, reconstituindo, em exaustivas descrições, o tom de rotinas ou de rituais - como em "Livings", que principia assim: «Lido com lavradores, coisas como desinfectantes e rações» -, a verdade é que a sua linguagem, aparentemente coloquial, procura e encontra algumas das formas mais límpidas e correctas da perfeição.
Por exemplo, em "Friday Night in the Royal Station Hotel":
«Pelas portas abertas, a sala de jantar afirma/Uma solidão mais vasta, de facas e copos/ E silêncio assente como uma alcatifa.»
Ou este conjunto, ao qual nada se acrescentaria ou retiraria, de tal modo nos parece estarmos diante de uma formulação que suspende, durante o tempo da sua leitura, o movimento do mundo:
«Em vez de palavras, vêem-me à ideia janelas altas:
O vidro que acolhe o sol, e mais além
O ar azul e profundo,
Que não revela
Nada e está em lado nenhum e não tem fim.»
A poesia de Larkin tem sido vista como uma reacção ao lirismo exacerbado do neo-romantismo, por um lado (de Dylan Thomas) e, por outro lado, contra o modernismo (de T. S. Eliot e Ezra Pound): há, nela, uma espécie de revolta contra tudo quanto seja excesso, exuberância, revolução; ora penso que a escolha de uma forma «clássica», para a qual métrica e rima são essenciais, constrói, muito mais do que a expressão mais justa dessa revolta, uma expressão de uma musicalidade irresistível. Mais do que no programa, portanto, na sonoridade...
O que descubro em Philip Larkin?
Um cinismo desesperado, sob a vulgaridade do quotidiano trivial, uma sensibilidade fina que, ao invés de se assumir nas lágrimas, prefere a ironia ou o sarcasmo doridos e dolorosos (veja-se o pungente "The Old Fools"), um desequilíbrio emocional triste e neurótico, vazado na perfeição de uma linguagem em que as imagens brilham, limpas, nítidas, tão bonitas, e os versos revelam uma invulgar inteligência poética.
É uma poesia dura, como dizia há tão pouco, citando uma ex-aluna, sobre A Metamorfose, de Kafka. E, sim, tal como também dizia ao mesmo propósito: é algo que nunca esqueceremos.
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