domingo, 7 de fevereiro de 2010

valter hugo mãe: a máquina de fazer espanhóis


Estou a ler um livro de que se tem falado muito, ultimamente. E há tanto a dizer acerca dele, e dos aspectos em que me parece conseguido, ou dos menos conseguidos, ou dos totalmente desconseguidos, que terei de desdobrar esta crítica em diferentes tópicos.

Principiemos por um ponto que, intransigentemente, tardo em compreender na obra do autor, valter hugo mãe. E que é, precisamente - como se vê, desde logo, pela forma como redige o nome - a recusa das letras maiúsculas.

Ao que me parece, e antes de mais, acede-se à língua - a qualquer língua - como se entrássemos numa casa cujos fundamentos existem já. Há uma gramática que, mais do que um uniforme apertado, é um modo de nos familiarizarmos e acordarmos no uso das palavras, e de as articular entre si, modo esse que veio evoluindo até fazer da fala e da escrita instrumentos eficazes, partilhados, claros. Comuns - de «comunicar».

Será que penso, portanto, que a adulteração dessas regras, ou o recurso a excepções, quando tornem o texto mais expressivo ou mais belo, são inaceitáveis? Obviamente que não. Todos os poetas se revelam, de algum modo, autênticos experimentalistas da língua. Fernando Pessoa foi-o, entre nós, de um modo extremo. E que dizer do português-moçambicano de Mia Couto, que bebe no modo de o seu povo se apropriar quotidianamente do português? Já para não falar de Saramago, que revolucionou a escrita, procurando que cada período fosse a expressão de uma multiplicidade de vozes em diálogo?

E no entanto, a eliminação das maiúsculas em nome de uma pretensa «dignidade democrática» de todas as palavras, que as igualasse entre si, soa como uma espécie de cedência à pura sede da originalidade pela originalidade. O que irrita. (Tanto mais, aliás, que nem se trata verdadeiramente de uma prática original). A prosa torna-se gratuitamente menos clara por causa dessa opção. E se a esta modernidade não falta coerência - porque, convenhamos, há coerência de sobra em que um autor submeta toda a sua obra a um tal espartilho - , falta-lhe um sentido relevante, pelo qual valesse a pena pôr em causa a tradição, e lutar!

Contudo, quando se trata do seu último livro, a máquina de fazer espanhóis, é fundamental não deixarmos que essa opção do autor (afinal, bem vistas as coisa, um mero pormenor), se transforme num bloqueio a priori. Porque perderíamos a oportunidade de aceder a uma sensibilidade fascinante: o narrador é um homem de oitenta e quatro anos, que enviuva de Laura, a mulher que amava ainda e sempre e, vítima de um ataque, na sequência desse falecimento, acaba num Lar de Terceira Idade. Ora é nesta apreensão do mundo a partir de uma situação particular (porventura comum na vida mas, na verdade, invulgaríssima na literatura), que radica o carácter revolucionário do romance de valter hugo mãe: muito mais do que a questão das minúsculas.

«um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua de razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico.». Se imaginarmos a voz e a reflexão próprias de um homem idoso, que não se limite à pieguice politicamente correcta que nos dá jeito atribuir-lhe, mas , pelo contrário, conserve o cinismo e a crueldade capazes de pôr em causa o mundo que vai perdendo - e a injustiça da maneira como esse mundo se volta contra ele -, percebemos a grandeza deste texto. A reflexão é genuína, autêntica, credível: sendo escrito por um autor que nasceu em 1971, não pode deixar de ser a de um jovem capaz de se colocar no lugar do outro, e de o compreender por dentro, emprestando-lhe os seus meios.

É um livro que se lê tensamente, mas, todavia, na proximidade de uma alegria, como reza a contracapa, «complexa, até difícil de aceitar».
valter hugo mãe não me convenceu com o seu livro premiado, o remorso de baltazar serapião (Prémio José Saramago, 2006) - que me cansou e de que desisti a meio. Convence-me, porém, com esta sua máquina. Lindíssimo.

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