A fazer fé no que "se" diz, Žižek seria "o filósofo mais perigoso no Ocidente". Em face deste título, devemos perguntar: perigoso porquê? Perigoso para quem?
A primeira pergunta responde-se a si própria a partir do momento em que analisemos o sentido do termo. O que podemos entender por "perigoso"? Se o perigo se constitui sempre como o que mina o nosso conforto, o que arrasa os alicerces sobre o terreno em que nos instalámos, no sentido em que Sócrates, "o moscardo", era considerado um perigo - e houve que o matar - Žižek tornou-se certamente um desafiador permanente, um outro moscardo, na melhor da hipóteses.
Contudo, isso não é novo. A filosofia, de certo modo, traz sempre perigo. O que faria deste filósofo um filósofo mais perigoso do que os outros, um filósofo transportando um perigo de outra qualidade, "o mais perigoso no Ocidente"? Podemos responder: o facto de ser um filósofo político. Notem: alguém que pensa a política, se é filósofo, nunca a pensa segundo o senso comum ou o status quo. Pensa-a tocando em pontos delicados e ocultos, pensa-a para além do visível e aceite, pensa-a fora da caverna, pensa-a perigosamente.
À segunda pergunta, respondemos assim que o lemos. Perigoso para todos. Para o capitalismo, que não consegue satisfazer as carências dos explorados, mas também para os socialismos, que em parte nenhuma foram capazes de realizar sociedades sem exploração, ou que satisfizessem as carências de novos tipos de explorados.
Problemas no Paraíso é um livro exigente no rigor e na complexidade do pensamento, mas nem por isso difícil de acompanhar: a leveza da escrita, a graça das anedotas a que recorre frequentemente (extraídas de filmes antigos - o autor é um indesmentível cinéfilo - ou próprias daquele cinismo de povos que, sob regimes comunistas, tão brilhantemente acertam na clivagem entre os discursos e a realidade sofrida), ou a luminosidade dos argumentos, interpelam-nos sem hipnotizar. O seu terreno é o da discussão com o leitor, não o da sua manipulação.Žižek faz uma releitura das origens da desigualdade. Se, para Marx e seus seguidores teóricos, a luta de classes era, na sociedade capitalista, o conflito entre os proprietários dos meios de produção, por um lado, e, por outro, aqueles que não possuem, para vender, mais do que a própria força de trabalho, segundo SŽ deu-se uma transformação: a ideologia dominante desfez a ideia de classe; em vez disso, os indivíduos foram ensinados a ver-se como "empreendedores-de-si-mesmos". Ou seja: a dívida tornou-se omnipresente. Todos estamos endividados, desde o país como tal, aos empresários, e dos empresários aos assalariados: como se essa ideia da dívida, que «eleva» cada sujeito a um endividado, fizesse recair sobre todos uma ilusória igualdade. (Ilusória porque não somos "empreendedores-de-nós-mesmos" em igualdade de circunstâncias, uma vez que as dívidas de um país ou de grandes empresas não têm as mesmas consequências - para os governantes ou para os empresários - que as dos pequenos negócios, nem, estas, as mesmas de quem pede um empréstimo para habitação própria, ou para o carro, ou para a educação dos filhos.)
O ponto é que nunca foi tão difícil combater o capitalismo. Em última análise, escreve Žižek, a sua autonegação é um ponto alto do capitalismo propriamente dito. Os capitalistas que investem na generosidade como um bem recentemente descoberto (seja na cultura, seja em investigação científica para o bem da humanidade, etc.), destruindo e negando aparentemente a lógica do lucro, na verdade ganham o prestígio e a admiração indispensáveis para o seu crescimento. Mais: exploram novos caminhos de atracção de consumidores, como quando asseguram que 1% do custo de um produto será doado à luta contra o cancro, ou aos bombeiros. Não é, portanto, o capitalismo que devém uma forma de caridade e benfeitoria. Apenas se adapta. Como sempre.
Este livro, em que tudo se debate, incluindo os problemas da liberdade e da gratuidade de informação que as redes sociais proporcionam (o que leva, porém, a que aqueles que desejam disponibilizar ao povo conteúdos secretos - Assange, por exemplo - sejam perseguidos pelos poderes; ou a que as grandes editoras e plataformas mais usadas - Facebook, Google - se insurjam contra os artistas que pretendem tornar acessíveis, sem contrapartida, as suas obras: músicos, escritores) não nos deixa indiferentes. Algumas teses são novas, outras - como o autor não esconde - serão a a síntese da investigação de muitos pensadores contemporâneos.
Entendo o epíteto: estamos perante um perigo para as várias versões de uma certa ideia de paraíso.
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