No meu último post, justamente, referia uma distinção, que sinto não ter suficientemente clarificado, entre obras imprescindíveis a priori e outras que apenas se tornam imprescindíveis depois de as termos lido.
A leitura de um livro é suficiente para, por si só, o tornar importante para nós. Dava disso alguns exemplos. Mas só o acidente de ter lido esse livro o tocou de uma espécie de carácter, que é o facto de, doravante, estar agregado ao meu mundo e ser, nele, uma referência. Lê-lo tornou-o importante para mim. Mas se eu pudesse assistir de fora, divinamente consciente de todos os mundos possíveis, poderia dizer: essencialmente, um mundo em que eu não tivesse lido este ou aquele livros, seria pouco diferente de um mundo em que tivesse a sorte de os ter lido.
Dei o exemplo de Em Busca do Tempo Perdido como, em contrapartida, uma obra imprescindível em si mesma. Porquê?
Socorro-me de uma ideia de Tchekhov. Escreveu ele, e é uma afirmação conhecida e abundantemente citada, que, numa peça dramática, o fio tem de estar tão bem concebido na uniformidade do seu todo, e de tal forma sem distrações ou desperdícios, que, se uma espingarda aparece "casualmente" pendurada numa parede, no I acto, já sabemos que essa arma será usada, no III acto, para matar alguém. Cito de memória e muito livremente.
Isto é verdade. Gosto de Tchekhov e de tudo quanto ele escreveu. Sobretudo dos contos. Já aqui confessei que o considero o melhor de todos os contistas e o pai inegável dos que valem alguma coisa. A sua busca de uniformidade é judiciosa. Contudo, Proust é o contrário disso: numa obra que se dispersa por tantos volumes, por diferentes idades e tempos de vida do narrador e das personagens com que essa vida se entrelaça, tudo são encantadores distracções e desperdícios, as memórias desenhadas aqui não têm minimamente a preocupação de que, do ponto de vista da narrativa, venham a ser recuperadas como explicação do que ocorre ali, e contudo, se nos distanciamos, tudo antecipa e retoma, tudo intimamente se liga e mutuamente se compreende, tudo, tudo (mesmo os hiatos, as incongruências) terá sido inevitável na construção da catedral móvel que é Em Busca do Tempo Perdido.
Não vejo como o encantamento provocado por essa consciência, por esse amor pelo romance de Proust, pelo meu contínuo e infinito regresso ao seu texto, para descobrir o que não estava lá antes (aparentemente), não me tenha transformado, não me tenha, até certo ponto (e não sei se é, de facto, só "até certo ponto"), ensinado a ler, ensinado até a escrever, e estabelecido um específico grau de exigência. Devo afirmar que esta obra me é imprescindível porque nasceu com ela, sem dúvida, o leitor que hoje sou.
Sem vaidade o digo. Não a escrevi, sou apenas um leitor rendido.
Mas compreendem que, assim imprescindíveis, existem poucas mais.
2 comentários:
Você conseguiu publicar nesse post o resumo do que acho importante na leitura. Ela tem que tocar um território desconhecido da nossa alma e colocá-lo bem à nossa frente para que possamos descobrir que há outras almas que sentem na mesma intensidade que nós, tanto assim que as compreendemos intimamente. Aconteceu isso quando li Proust e da mesma forma quando li Kafka e Fernando Pessoa (O Livro do Desassossego). Acrescentaria Clarice Lispector.
Um abraço.
Sônia
Perfeitamente de acordo, Sonia. E sim, esses seriam alguns dos meus. Kafka sem nenhuma dúvida. O Livro do Desassossego, é claro. Clarice. Acrescentaria Dante. E três russos.
Enviar um comentário