Variadíssimos ingredientes se reúnem para me levar a escolher, entre os livros da biblioteca (de Oeiras), precisamente este, que se chama Bombaim: A Um Mundo de Distância.
É o romance de uma autora indiana, que emigrou para os Estados Unidos, tem um doutoramento em Literatura Inglesa e escreve sobre um conjunto de personagens nada lineares, com esse mundo irredutivelmente distante, Bombaim, por cenário.
E se é verdade que, ao princípio, o texto me fatiga, como se eu precisasse de encontrar uma porta que não vejo em nenhum lado, um pouco perdido na espessura pantanosa de frases longas e excesso de adjectivos, há um ponto, há um determinado ponto do romance em que as personagens se tornam pessoas, e uma subtil compreensão dos seus sofrimentos, dos seus actos e dos seus erros os aproxima definitivamente.
Sei o que é. Uma oscilação contínua, uma ambiguidade dolorosa, uma ausência de nitidez moral, uma total impossibilidade de maniqueísmo. Nada está escrito a preto e branco. Nesta difusão, percebemos a raiva da avó contra a neta, grávida de um pai desconhecido, ou seja, vemos até que ponto são as suas próprias expectativas e esperanças que estão ameaçadas; e mesmo a atitude cruel de Sera contra a sua sogra acamada, incapaz de se defender, se torna - não me atreveria a escrever «aceitável», mas «humana», desde o momento em que tomamos consciência do que foi a perseguição com que a velha mulher, recebendo em sua casa a esposa de seu filho, filha de pais cultos e modernos, a humilhou e esmagou metodicamente, em nome de uma tradição, ou da inveja, ou do ciúme. Ou da incompreensão. Ou da maldade - mas a maldade nunca, precisamente, é tão-só maldade. Do mesmo modo, nunca a bondade é tão-só bondade: nunca a compreensão nos é apresentada sem momentos de incompreensão ou dúvida, nunca a generosidade nos aparece sem falhas, sem obscuridades, sem regressões, nunca a ternura é completamente desinteressada. Nunca os actos bons, pelos quais os beneficiários estão gratos, se realizam sem que, todavia, o seu agente saiba que poderia fazê-los ainda melhor, mais completos. Se não fossem a cobardia, a impotência, o medo...
A contrapartida é, como escrevia, que mesmo nos comportamentos terríveis de personagens com as quais não podemos simpatizar, agressivas e agressoras, percebemos lutas internas contra si mesmas, possibilidades inaproveitadas de redenção.
Sobretudo, não há linearidade. O amor é feito de diversos cambiantes, a indignação também, nenhum sentimento é líquido e eternamente igual a si mesmo: tudo muda e se divide, e se desfaz ou refaz. É nesta inquietação, neste captar do que flui e não se esgota num nome, que me parece que o romance de Thirty Umrigar devém de uma subtileza extrema - e de uma extrema invulgaridade.
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