Meu avô era um admirador de Saul Bellow.
Lembro-me perfeitamente de certas preferências, surpreendentemente ecléticas, do pai de minha mãe: John Lennon, quem diria?; Ary dos Santos, que insultava por razões ideológicas, sem conseguir esconder o respeito pelo talento poético; Proust, de que relia, infatigavelmente, os volumes da Gallimard, que herdei e guardo ali, na estante, muito velhinhos (embora eu ainda tivesse tido dinheiro para mandar encadernar um único: o primeiro); Sartre - que também insultava, tratando-o de «monstro», mas lia com atenção -; e Bellow. Meu avô conhecia-lhe a obra, ainda o autor não recebera o Nobel em 1976. Eu só o conheceria, evidentemente, muito mais tarde.
O primeiro livro que li da sua autoria foi Herzog. Espantei-me: com a coragem de tomar por personagem praticamente exclusiva um homem (os seus pensamentos, as suas conversas imaginárias, as suas obsessões, que expressa em cartas, muitas das quais nunca serão enviadas, ainda que continue exaustivamente a escrevê-las). Na altura, eu era já estudante de filosofia. [Meu avô, curiosamente, nunca acreditou em mim como estudante de filosofia]. E Herzog, professor de filosofia, interessou-me desde as primeiras linhas pelo rigor e pela cultura da reflexão, tensa, elevada, cínica: é munido desse espírito filosófico, discutindo consigo e com os filósofos, escrevendo-lhes, que visita o seu passado - ou a trágica sucessão de perdas afectivas que constituiu o passado.
Mais tarde, li outros livros de Bellow: mas em nenhum outro tornei a encontrar aquela intensidade com que se descreve um único homem, o qual, no momento em que tenta reerguer-se, entra em colapso, medindo-se com os seus fantasmas e com uma lucidez que está já na orla da loucura. Com que se descreve o seu estranho e complexo mundo: um mundo que existe e não existe; um mundo que só até certo ponto é real, mas é, sobretudo um vazio profusamente povoado; um nada em que se encontra a si próprio, a sua dor, os seus limites. Mas, como escrevia, nunca mais voltei a encontrar o mesmo Bellow - o de Herzog. Esta é a formulação pessimista. A optimista seria: felizmente, e graças a meu avô, um dia encontrei o autor de um romance (sim, poderíamos chamar-lhe: romance) que nunca mais esquecerei: Herzog.
4 comentários:
Tenho esse livro e ando para lê-lo há muito tempo. A pilha é enorme.
Desconhecia o autor. Fiquei com vontade de devorar esse livro
Não consigo encontrar este livro.
Não queres partihar?
De muito boa vontade, fernanda bau. Mas como? Sugeres algum local - talvez uma biblioteca - onde eu o possa deixar para ti? Ou conhecemo-nos? Ou não estavas a falar comigo? Frequento as bibliotecas de algés, oeiras e são domingos de rana. [Há sempre a hipótese, se por acaso sabes do lançamento do meu livro - Livraria Barata, avª de Roma, sábado 19 de Março, 17. 30 h - e te apetecer ir, que mo digas, para eu te levar o Herzog. Se não, propõe uma alternativa.
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