sábado, 8 de janeiro de 2011

BLOCH, EXTRAORDINÁRIA PERSONAGEM DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO


Lendo Brideshead Revivida (porquê chamar-lhe, em português, «reviver o passado em Brideshead»? poder-se-ia reviver o presente ou o futuro?), tropeço numa personagem, o diletante Anthony Blanche, que me reenvia para uma outra: Bloch, de Em Busca do Tempo Perdido, lembram-se?

Em Busca do Tempo Perdido é o auge da literatura humana. [Literatura humana parece uma estúpida redundância, mas admitamos que haja uma literatura angélica ou divina, sobre que me não pronuncio]. Não conheço, de nenhum ponto de vista, qualquer obra que se lhe assemelhe, e já várias vezes proferi um tal juízo, dogmático e arrogante. As inúmeras personagens do romance, em sete volumes, de Marcel Proust, vão-nos sendo apresentadas, ao longo do tempo e das páginas, segundo diferentes ângulos. É inquietante apercebermo-nos, aos poucos, de que o Barão de Charlus, que pela primeira vez descobrimos nos volumes iniciais (pelo olhar do narrador que recorda e se repõe, então, no olhar da criança que era), vai sendo completado e transformado à medida que o narrador cresce, e conhece melhor Charlus, com ele convivendo em novas situações. O próprio Charlus, claro, muda enquanto envelhece. Mas não é isso, não é só isso: o pequeno Marcel engana-se na sua observação; começara por conferir ao Barão qualidades que este nunca teve, porque se equivocou na interpretação de certo contexto em que o surpreendera. E o leitor equivoca-se com o narrador. Assume, sem saber, o seu olhar iludido, de modo que a série de erros que condiciona a percepção que se tem do Barão, só com o tempo, volumes mais tarde, se dissolverá e reajustará para permitir que nos aproximemos mais da realidade de Charlus. Não é soberbo? Não é genial, esta contenção de Proust, que não joga imediatamente com as cartas todas, mas as vai ocultando e revelando ao sabor de um tempo, que ele domina? De acordo com o amadurecimento do narrador, o qual, ao longo dos anos, não poderia manter-se uma consciência fixa, igual a si própria?

Bloch é, também, uma personagem extraordinária. Retomo-a, pois, muitos anos depois, a propósito de Anthony Blanche, de Brideshead Revivida, que o evoca claramente.

O jovem Bloch finge não notar que os demais, quando olham para ele, apreendem sempre um «judeu». Mas, na verdade, está obsessivamente consciente do seu «ser judeu» e está paranoicamente desconfiado de que os outros o estigmatizam pelo mero olhar. É esta permanente má-fé, esta luta de consciências, este querer fingir que não percebe ao mesmo tempo que não consegue não reagir agressivamente ao que julga perceber, que estão na origem das suas atitudes recatadas e ostensivas, entre um snobismo refinado e a mais inesperada grosseria, a sua necessidade de passar despercebido e a de dar nas vistas da forma mais provocatória. Frívolo, culto, carente e agressivo, superficial e profundo, a contas com a história de um povo em que se reconhece e não reconhece, Bloch é surpreendente: para si mesmo o é, aliás, como se ele fosse o primeiro a não poder prever a direcção do seu orgulho, do combate entre um complexo de inferioridade e uma claudicante convicção de superioridade.

Tudo me reconduz, pois, às personagens de Proust. Os melhores livros beberam de Em Busca do Tempo Perdido. Reviver o Passado em Brideshead é um livro que tem na sua genealogia a obra de Marcel Proust.

4 comentários:

Zé alberto disse...

Este texto sobre Proust é para mim muito precioso, pois nunca li nada desse autor tão importante, e tomando contacto com o que o José descreve vou-me apercebendo com que linhas se coze o génio que marca a escrita de Proust.
Obrigado por este post!

abraço!

Luiz disse...

Oi José. Obrigado pela visita ao meu blog. Gostei muito do seu espaço e estou seguindo. Voltarei outras vezes. Fiquei encantado com o nome do blog, creio que uma referência ao filme de Antonioni, não?

josépacheco disse...

Vagamente, sim. Mas estaria no meu inconsciente, porque devo confessar que, na altura em que decidi o nome, não tive consciência de aonde o tinha ido buscar. Obrigado, Luigi, e devolvo com toda a sinceridade o elogio.

Mariana disse...

Bem, essa dinâmica Brasil-Portugal, para além de (des)acordos ortográficos, anda boa.