Certos escritores são tão importantes pela sua vida como pela sua obra. Alguns, mais até pela vida do que pela obra. Seria injusto considerarmo-los fracassados por isso. Num certo sentido, é absolutamente verdade que a sua vida é a sua melhor obra. Afinal, inúmeras são as possibilidades da arte, e a própria existência é uma matéria tão boa como a tela, a pedra, o papel.
Havia, em Portugal, um artista exímio no domínio da vida: Santa-Rita Pintor. Deu-se com os melhores do seu tempo. Era um génio da performance. Participava de todas as tertúlias, dos debates mais encarniçados, pateava, gritava, arengava. Dava nas vistas pela excentricidade na maneira de vestir e de estar. Sabemos, concretamente, o que produziu? Talvez um quadro - sobre que falava mais, aliás, do que o que realmente dele realizava; não sei bem que mais nos deixou. Mas não passou despercebido. A sua vida foi uma obra plena e exuberante.
Albert Cossery é, talvez, um desses artistas. Aquilo que sabem todas as pessoas, mesmo as que nunca o leram, é o que diz respeito a uma atitude: de escárnio, de preguiça. O seu prazer assumidíssimo pela preguiça: vivia num quarto de hotel, livre, solto e descomprometido (como às vezes o invejo), e era admirado, também, pelos grandes escritores franceses do seu tempo: Genet ou Camus, por exemplo, ambos, a seu modo, artistas da vida.
Cossery - basta ir à wikipédia - tornou-se conhecido pela sua propositada lentidão na escrita. É da sua autoria, precisamente, o programa de escrever romances «ao ritmo de uma frase por dia». Escreveu oito, se me não engano. E, dos oito, conheço um único: A Casa da Morte Certa.
A Casa da Morte Certa, para além de um título fabuloso, é um romance sobre personagens mesquinhas, pobres, invejosas, ressentidas, egoístas, talvez ainda sobre um senhorio rico mas desamado - não me lembro -, mais egoísta e mesquinho do que todos os outros. E algo de confrontos cobardes, de arruaceiros infelizes, de relações sem possibilidade de confiança. Curioso que, deste livro que, na altura, me impressionou deveras, não consiga agora senão evocar mais do que estes fragmentos sobre uma comunidade de vizinhos árabes, mal-cheirosos e mal avindos, maldosos e sem esperança. Apetece-me reecontrar o livro, e relê-lo, para o comparar com estas memórias esparsas e vagas de uma leitura adolescente.
Em todo o caso, não importa. Porque a memória que me permanece nítida é a da vida de Cossery - e do statement que ela implica, e que ela foi. Talvez erradamente, escrevo este post para falar de um executante maior da arte do escárnio e da preguiça. Na própria vida.
4 comentários:
Esta representação dum autor que escreveu A Casa da Morte Certa não podia ser melhor.
Que bacana. Não li o autor, mas adorei essa ideia da vida como obra de arte. Um abraço!
Subscrevo o Luigi.
"inúmeras são as possibilidades da arte, e a própria existência é uma matéria tão boa como a tela, a pedra, o papel." Muito bonito o post.
Acabo de ler " As Cores da Infâmia " e foi este o único livro que li de Albert Cossery. O livro foi um espanto para mim, no tema, nas personagens, no ambiente .Curiosa, fui descobrir mais sobre o autor e de tudo o que me fascina é a possibilidade da vida dele, vivida como " obra de arte ". Talvez porque imagino que poucos o conseguem...Mas, percebo que este livro é acutilante , despojado e de certa forma desconstrutor do genericamente " estabelecido" . Exageradamente realista ,assombroso .
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