Não me lembro de quando li Kafka pela primeira vez.
Sei, vagamente, que era um tempo estranho da minha vida. Estava em Portugal, recentemente vindo de Moçambique, de onde o curso dos acontecimentos me expulsara de vez: era um jovem de óculos muito grandes e muito graduados e uma cabeleira comprida e avessa a pentes. Usava camisolas de gola alta. Não tinha amigos - e os colegas que descobria, antes os não descobrisse.
Lia muito, muito, muito. Aproveitava, por exemplo, para me abastecer de livros que, na terra de onde vinha, não eram comuns. Li Sartre. (As Palavras). Li Nietzsche. (Humano, Demasiado Humano). Li Kafka. Não recordo por que ordem, mas devorei
O Processo, O Castelo, América e, obviamente, A Metamorfose.
Pelas leituras que fazia, descobrirão alguma coisa sobre o género de jovem que eu era e o adulto em que me viria a metamorfosear. Depressivo, inquieto e inquietante, ligeiramente perturbado, triste, desenvolvendo um cinismo e uma descrença teimosas relativamente à humanidade.
Alguma coisa boa me veio destas descobertas. Uma, foi ter confirmado a inclinação para a filosofia, que me levou ao curso de que nunca me arrependi.
Outra, foi precisamente essa descrença - e essa atenção à estranheza do mundo dos homens.
Kafka, para me fixar num dos autores referidos, é dolorosamente fabuloso. A Metamorfose, mais do que uma novela de horror, toca-nos como um livro de uma delicadeza surpreendente. O que incomoda é que, por uma vez, o monstro não é o outro, vindo de longe para nos assustar: o monstro é o sujeito mais vulnerável e carente que imaginar se possa. Bem sei: em Frankenstein, por exemplo, é também da vulnerabilidade do monstro que se fala; mas não como em A Metamorfose, em que só nos resta a possibilidade de nos identificarmos com a criatura em que Gregor Samsa se transforma.
O protagonista, que acorda, certa manhã, como um insecto de inúmeras patas, não é senão, no interior da sua carapaça, da sua «insectez», do seu aspecto hediondo e repelente, o mesmo homem de sempre - o caixeiro viajante que se preocupou obsessivamente com a família, sustentou a casa, pagou, dedicada e generosamente, os estudos da irmã.
E, por uma vez, os «normais» - o pai, a mãe, a irmã até certo ponto - deixam que neles se revele a única e inesperada monstruosidade: a que pode ser criada por um misto de medo e preconceito. Chamemos-lhe insensibilidade. Essa sim, a mais tenebrosa de todas as disformidades, a esvaziadora dos afectos e dos sentimentos, a que faz esquecer os laços e as relações, a que nos torna malévolos perante o que nos aparece como diferente.
E lembro-me de que, muito mais tarde - já, então, eu professor de liceu- houve uma aluna que, numa reunião em que falávamos acerca de A Metamorfose, disse tratar-se de um livro duro - e que nunca esqueceríamos. Retomo-a: é um livro duro. Ensina que todas as pessoas boas, que nos habituámos a amar, os próximos, a família, virão, em certas terríveis circunstâncias, a tornar-se inimigos nossos e seres maus. Mas, ao mesmo tempo, delicado: porque há uma delicadeza no modo como Kafka trata o desamparo, a desastrosa quebra da rotina, o temor do mundo, a infelicidade.
E, por tudo isto, é, de facto, um livro que não esqueceremos.
2 comentários:
Adorei a postagem. Kafka me fascina. Conheci "A Metamorfose" na adolescencia, "O Castelo" na faculdade e em umas férias não muito distantes enlouqueci com "O processo". Estudei há pouco tempo um texto de Walter Benjamin que situa como a obra de Kafka dialoga com a tradição judaica, é muito interessante, chama-se "A propósito do décimo aniversário de sua morte".
Este foi um dos livros maisternos e mais chocantes que já li. Foi o primeiro livro do Kafka que tive contato.A partir daí, não parei mais.Adoro.
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