sábado, 25 de setembro de 2010

MIA COUTO: JESUSALÉM

Quem siga este blogue há algum tempo (não se riam: pessoas há, com efeito, que o seguem, não diria religiosamente, mas regularmente), terá sem dúvida tropeçado nas reticências que já manifestei a propósito de Mia Couto.

A minha relação, não isenta de ambiguidades, com a obra de Mia Couto tem uma história longa, que posso resumir. Como ele, sou de Moçambique. Como lhe aconteceu a ele, Moçambique também se entranhou irremediavelmente em mim. Aliás, conhecia Mia Couto de vista: era eu um estudanteco liceal, era ele já o promissor jovem jornalista da revista Tempo, cuja redacção se situava no rés-do-chão do prédio onde a minha família morava; cruzávamo-nos, pois, num café próximo. Eu estava sempre atento ao rapaz baixo, de óculos redondos e barba, que se sentava diante de uma chávena fumegante, com dois ou três colegas. Ouvia-os, ao longe, da minha mesa desimportante.

Quando vim definitivamente para Portugal, por razões que não vem ao caso rememorar, sofri a perda de Moçambique, como o apaixonado que se despede, talvez para sempre, da sua amada. E nesses dias em que andei perdido e desintegrado, pelas ruas minúsculas, frias e tortuosas de Lisboa, sem conhecer ninguém e sem conseguir fazer amigos, desligado de uma cultura que compreendia mal e me olhava de revés, a descoberta dos contos de Mia Couto, que se estreava então (penso) na literatura, salvou-me de um qualquer precipício.

Couto devolvia-me, mais do que histórias típicas, uma linguagem em que reconhecia a fala do meu povo moçambicano, com a sua notável capacidade para inventar verbos a propósito de tudo: «frescar», para ir apanhar fresco, «bichar», para estar numa fila (bicha), «matabichar», para a primeira refeição, a que «mata o bicho», ou o prodigioso «desconseguir», tão eficaz, sucinto e correcto como oposição ao enunciar do conseguimento de algo; reencontrava a sintaxe solta, próxima da brasileira, os gerúndios, os termos saudosos, as palavras reinventadas. Mia Couto foi um dos que me salvaram do absoluto desamparo.

Que se estragou, entre nós, de então para cá? É difícil de explicar. Por um lado, cansei-me de um tom politicamente correcto, moralista, que se adensava nos romances e, mais do que aí, nas suas crónicas, nos seus artigos, nas suas «opiniões». Por outro lado, aquela linguagem que principiara por ser uma ventania, uma descoberta, uma revolução, uma comunhão e, não sei bem como, se ia tornando forçada, artificial, previsível, aquilo a que chamamos uma fórmula: Mia Couto ia-me sendo insuportável. Mais: como todas as outras pessoas o adoravam, esta minha fadiga tornou-se uma espécie de segredo inconfessável, de mal-estar solitário, impartilhável.

Regressei ao autor, porque um seu último romance me foi recomendado por uma amiga que nunca me deixara ficar mal. Comprei, portanto, Jesusalém e, de facto, encontrei-me, de súbito, perante uma história inesperada, com um certo travo de realismo mágico, ou de realismo quase-mágico, desenhando uma realidade a tocar nos seus perplexos limites: maravilhosamente improvável, se bem que não, em rigor, impossível.

A linguagem renasceu. Como se Mia Couto se tivesse apercebido de que havia que mudar. Algumas metáforas continuam a parecer-me pobres (engordar o silêncio da noite, por exemplo, soa-me mal; topo, em contrapartida, um delicioso «poentar», designando a acção do sol poente), mas quase consegue retornar a um moçambicanês autêntico, que me faz reaver o sentimento de maravilha dos primeiros tempos.

Neste romance acerca de loucura, isolamento e revolta, podemos ler a alegoria de uma terra que, de algum modo, cortou laços e se perdeu de si («Jesusalém»). É simplesmente uma leitura possível, uma leitura latente, uma sub-leitura. Trata-se, em qualquer caso, de enfrentar a derradeira esperança de uma redenção, mas uma redenção céptica e amargurada, sem réstia de inocência, nesta religião invertida, que vive aquela família, certa de que já nada ou ninguém mais se encontra vivo no mundo a não ser eles, e esperando o regresso de Deus - mas, naturalmente, para pedir desculpa por todos os erros por Si cometidos.

A amargura fica bem a Mia Couto. A quebra da inocência não é necessariamente um fim. Será, é claro, a perda do paraíso: todavia, a perda do paraíso é o início de algo mais difícil, mas, porventura, muito mais interessante.

2 comentários:

Rosário disse...

Posso falar com todas as letras? Eu odeio Mia Couto! Para mim ele não passa de uma imitação muitíssimo barata do Guimarães Rosa. Odiei estudar Literaturas Africanas de Língua Portuguesa por causa dele.

josépacheco disse...

Fale sempre com todas as letras, que eu gosto. Compreendo-a, Florinha. Mas Jesusalém tem algum interesse... (claro que se o odeia mesmo, talvez não seja boa ideia voltar a ele...)