domingo, 6 de junho de 2021

HERVÉ LE TELLIER: A ANOMALIA

Para além de uma capa muito bem caçada, que será, suponho eu, a da edição original, e de uma tradução de Tânia Ganho, para português, absolutamente impecável, "A Anomalia" poderia mesmo ser considerado aquilo que prometem. A reconciliação entre um romance, digamos assim, "literário", com citações e referências a piscar o olho a um leitor que se considera erudito, e um romance de vertigem, um "thriller", para que se tem usado o novo anglicismo "page-turner", quer dizer... bem, não vou pôr-me pedantemente a tentar ensinar o que já todos sabem. Ora devo dizer que, de um certo ponto de vista, me satisfaz. Viro as páginas rapidamente, ansioso, com efeito, por agarrar o seguimento, mas percebo que não se trata de uma obra linear, um policial de aeroporto: contém os problemas existenciais de personagens, um peso intelectual que não podemos limpar dos ombros como se fosse caspa. O que me insatisfaz nessa primeira satisfação? Compreender que a "dimensão cultural" é ali, de facto, como caspa: não se sacode, mas descobrimo-la como um apêndice inútil; a história não se alimenta desse lado - seria similar, sem ele - e, portanto, ele funciona como uma dimensão artificial em que o romance se quer banhar. A outra face, em contrapartida, também tem que se lhe diga. Em que consiste o truque? Existem variadíssimas personagens (escolhidas de entre os passageiros de um voo tenebroso) e, ao longo de grande parte do enredo, cada capítulo é sobre uma ou duas dessas personagens. Adensa-se o mistério; em cada uma delas pressentimos um segredo, ou um mistério, e dir-se-ia que nada mais as une senão o voo partilhado. De alguma coisa que certamente sucedeu e não sabemos, e de uma culpa que poderão carregar, mas desconhecemos, decorre que o FBI (ou organismos de defesa de outros países) os persegue. Ou seja: a manutenção do suspense faz-se através do mesmo mecanismo, que se repete, capítulo atrás de capítulo, aplicado, de cada vez, a novas personagens. E apesar de tudo, sinto que não faço justiça ao livro - porque, mesmo sob o efeito racional desta análise, ela não me impediu de o ler vertiginosa e deliciadamente. Com o leitor primitivo que há em mim, não-analítico, emotivo e menos exigente, funcionou perfeitamente. PS: Por outro lado, não deixa de ser verdade que, a partir da segunda parte do livro, o mistério se torna realmente interessante. E nos fazemos uma pergunta: que explicação, que não seja risivelmente absurda, poderá o autor encontrar para a "anomalia" detectada.

1 comentário:

sonia disse...

Puxa, você atiçou minha curiosidade!