quarta-feira, 19 de março de 2014

EMMANUEL CARRÈRE: D'AUTRES VIES QUE LA MIENNE



Se os livros deviam ser lidos consoante os estados emocionais de quem lê, e se, tão importante como a busca de afinidades que nos conduzam a um autor, é o evitar precavido das afinidades na dor [podemos assim designá-las: o tema que nos fere, ou a narrativa que nos custa e se nos torna insuportável], então não posso recomendar esse texto - não lhe encontro melhor denominação - de ânimo leve a todas as pessoas.

Introduzida esta precaução, posso escrever que é um livro duro, simples, profundo e profundamente transformador. Não há qualquer contradição dos adjectivos entre si. Descobri-o numa entrevista a Paulo Varela Gomes, que o mencionava como um dos escritos mais surpreendentes e fortes que leu ultimamente.

A questão é a da morte. Carrère debruça-se sobre duas mortes; duas, confessa ele, das que mais medo lhe provocaram desde sempre: a de uma criança que morre a seus pais, e a de uma mãe que morre a seu homem e a seus filhos pequenos.

Nada liga estes dois momentos de perda, a não ser a proximidade no tempo e uma testemunha comum, precisamente o autor. Perguntamo-nos se tal articulação faz sentido, ou se cada uma destas experiências não teria constituído, por si mesma, um livro autónomo. Não pode, a primeira - narração da busca do corpo de uma filha tragada pela "vaga": um tsunami, ao tempo em que a palavra ainda não estava na moda -, não pode, a primeira, e na medida em que é uma descida ao centro do horror, impedir que se preste toda a atenção à outra estória? Seremos ainda, depois de uma, capazes de compreender e avaliar o grau de terribilidade da outra?

A segunda estória é sobre o cancro. A força do tema reside nisto, em que se descarte qualquer eufemismo. É, pois, também a reflexão pungente sobre como o doente olha e enfrenta o seu cancro: é um inimigo? um estrangeiro? um corpo estranho crescendo, invasora, transgressiva e abusivamente, no meu corpo? ou, pelo contrário, uma parte de mim, parte do que eu sou e, de algum modo, serei sempre, ainda quando o haja vencido?  

São, ao mesmo tempo, questões tão emotivas e tão íntimas, que algo como um despudor parece, por vezes, desprender-se daquelas páginas. Apesar do tom contido, directo, sem exibicionismo estilístico. É um testemunho que não se faz passar por romance. Não existem diálogos, mas a reconstituição daquilo a que o autor assistiu, ou a evocação das conversas através das quais procurou compreender aquelas pessoas.

E, no entanto, o romance está lá. Aquelas pessoas [quer tenham existido, quer não; quer se trate de um testemunho autêntico, ou o "testemunho" seja, tão-só, a forma de uma ficção: no fundo, que me importa, a mim, «hipocryte lecteur»?]  aquelas pessoas tornam-se personagens: para nós, leitores, nunca serão senão personagens. Se as vemos efectivamente, é porque o narrador as desenhou de maneira que as torna próximas e reconhecíveis, entre uma singularidade, que nos surpreende, e uma universalidade que no-las oferece, compreensíveis, nossas irmãs, como nós. São, quase todas, sínteses, paradoxais, de defeitos graciosos, perdoáveis, e de insuspeitadas heroicidades. Como só o finíssimo espírito de observação de um romancista poderia apreender e penetrar-lhes o significado íntimo. Atentem, por exemplo, em algo tão aparentemente irrelevante - e tão essencial, de facto - como este tique de personalidade de uma personagem:
«Sempre que alguém o interrompia, não para o contradizer mas para confirmar, completar, comentar o que ele dizia, sacudia a cabeça e murmurava que não, não era bem isso. A seguir, retomava a ideia, dizendo a mesma coisa com uma ínfima nuance. Penso, para argumentar como ele, que tem necessidade de não estar de acordo, para concordar com as pessoas

E se falava da heroicidade como a contrapartida da série de minúsculos defeitos que compõem uma personagem, não queria referir-me propriamente a alguma bravura ofuscante, aventureira, exibicionista. Pelo contrário: é a coragem que não adivinhamos, que não se vê de fora. A tal ponto, que podemos começar por nos perguntar - na verdade, não no-lo perguntamos, mas admita-se retoricamente a pergunta - o que têm estas pessoas de especial. Que há realmente de grandioso a escrever sobre elas? Ou, na formulação amargamente cómica de alguém, quando o autor o põe a par do seu projecto:

«Acho-te engraçado. És o único tipo, que eu conheço, capaz de pensar que a amizade de dois juízes coxos e cancerosos, mergulhados em dossiers de sobre-endividamento, num tribunal de pequena instância, é um tema de ouro. Para mais, não dormem juntos e, no fim, ela morre. Resumi bem? É isso a história? Confirmei: é isso

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