segunda-feira, 3 de março de 2014

JAMES BOSWELL: THE LIFE OF SAMUEL JOHNSON



Não é que esta forma de contar uma vida seja, em si mesma, de uma absoluta originalidade. O seu modelo é Plutarco, que o biógrafo de Johnson, aliás, cita abundantemente, com a reverência de quem quer que lhe reconheçam a fonte a que foi beber. Não lhes importa tanto o registo de grandes feitos, mas o do gesto quotidiano, da anedota que não teve senão repercussões na intimidade familiar, ou de um grupo de amigos, das pequenas manias, das excentricidades. A encantadora tese que subjaz a um empreendimento deste género é a de que só conseguimos reencontrar o homem vivo, na descrição dos sinais da pessoa a sós, ou entre próximos, esquecida da necessidade de compor uma pose. Fora desta busca, arriscar-nos-íamos sempre a confundir uma biografia com um compêndio de marcos principais: as datas ilustres de uma vida, e não uma vida.

Deste ponto de vista, Samuel Johnson é o biografado que se ajusta. Tal como João Gaspar Simões escreveu, sobre Oscar Wilde, que o génio deste residia mais na arte de conversar, do que na escrita de uma obra [sendo que a melhor parte da sua obra é a que traduz esse talento para a conversa, ou seja: o teatro], também Johnson é um desses conversadores cuja vivacidade vicia os que o escutam, cujas ideias e formulações, aqui redescobertas, temos pena de não ter podido ouvir de viva voz, cujo capacidade para prender o interesse do interlocutor é uma arte. "Verve" traduz insuficientemente este dom do uso engenhoso e divertido das palavras, esse peculiar tipo de espírito que os ingleses designam por "wit", e não faltaria a Samuel Johnson.

A biografia escrita por Boswell é um testemunho deste fascínio pelo conversador e pelo contador de estórias; há qualquer coisa de uma paixão e de um erotismo platónicos nessa devoção. Estavam, de resto, reunidas as condições perfeitas: Boswell privou com Samuel Johnson durante cerca de 20 anos que nenhuma outra convivência poderia superar ou empalidecer. Meu primo - que me falou entusiasticamente, e mais de uma vez, da obra em causa - dizia-me conseguir quase ver Boswell com uma atenção fremente à mais irrelevante frase de Johnson, apontando-as todas, assim que pudesse, e revendo-as, à noite, já a sós, deleitando-se com elas e suspirando de prazer ante a ideia de vir a imortalizá-las.

Boswell não se limitou ao que Johnson contava sobre si mesmo, e acerca da sua infância ou adolescência: procurou junto dos antigos professores, de companheiros ou familiares; guardou amoro
samente poemas ou trabalhos académicos que lhe confiavam: as traduções que o Doutor Johnson fizera, do latim ou para latim, as breves dissertações. Guardou cartas, memorandos, rascunhos. Ouviu anedotas, memórias, opiniões. E deste monumento inigualável [bem! falo de 900 e muitas páginas] resulta um retrato com movimento, sobressaltos, sangue e odores. Não, porém, e ao contrário do que se esperaria de um tal conversador, o de um génio intimamente reconciliado com a sua luz, mas uma personalidade atormentada, e perdida muitas vezes nos subterrâneos meandros da sua sublime obscuridade interior: a melancolia, a abulia, que lhe impede um trabalho de fôlego sistemático e lhe impede um estudo aplicado [a ele, que tudo e tanto gosta de ler], a irascibilidade, ou a terrível hipocondria. [Não a medíocre hipocondria que nos cabe a todos, mas a aterradora, contínua e paranóica identificação de sintomas maléficos. Suponho que os génios até na neurose devam ser excessivos; e presumo que, em última análise - aliás, Johnson di-lo -, o seu prazer pela conversa, o seu humor, o seu espírito, mais não fossem do que o lenitivo passageiro, e mais adequado à sua natureza, ou a pontual alienação do seu tortuoso padecimento interior.]          

Boswell não seria Boswell se nunca se houvesse cruzado com o que se tornaria o seu biografado; e Samuel Johnson não seria o Doutor Samuel Johnson a que nós tivemos direito, se não encontrasse o seu Boswell. Claro que ambos o sabiam: eles trabalhavam para a posteridade. Construiram-se mutuamente: e essa mútua construção consubstancia-se numa biografia como não creio que fosse possível realizar-se uma outra, sequer próxima.  

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