sábado, 7 de abril de 2012

AGATHA CHRISTIE: O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD





Um bom romance policial deve ler-se pelo menos duas vezes.

Uma primeira, espontaneamente, sem defesas prévias (tirando as que não conseguimos descartar por completo), tentando vagamente fixar alguns indícios que nos permitam descobrir, o assassino, primeiro do que o detective-protagonista; mas se se trata de um bom romance, o que se espera é que nos enganemos: por leitores inteligentes que sejamos, por leitores experimentados que nos consideremos.

Por isso, tem de haver uma segunda leitura: aquela em que tentamos perceber os truques que o mágico escondeu na manga, os fios invisíveis que nos escaparam na primeira vez. Como é que ele fez aquilo, como nos enganou, onde nos fez tropeçar, que falsas pistas semeou.

Umberto Eco, por quem a minha admiração não tem limites, cometeu um erro crasso. Em certa conferência, de resto brilhante, em que usava o livro de Agatha Christie como um exemplo de mestria e rigor na construção, acabou falando de mais. A conferência era acerca do conceito de narrador, e, naturalmente, em O Assassinato de Roger Ackroyd, o segredo vital, ou mortal, reside numa certa forma de narrar; infelizmente, Eco não foi capaz de apresentar a sua tese acerca do romance sem, despudoradamente, revelar o assassino.

Parti, pois, para o livro de Agatha Christie sabendo de antemão quem era o criminoso. Ter-me-á faltado, então, a leitura inocente que é indispensável na fruição de qualquer policial. Mas, mesmo assim, devo dizer que este romance é soberbo; e a leitura advertida que fiz valeu bem a pena.

Lembro-me de haver ouvido descrever Christie como sendo uma autora manhosa, que arranca os seus assassinos praticamente do nada, tendo "partilhado" [palavra da moda] muito poucos indícios com o leitor: fazendo, portanto, jogo sujo. Pode ser. Mas não é certamente o caso, nesta história em que se confundem duas lógicas, e tudo depende de sermos capazes de as separar: uma lógica das aparências, e uma lógica subterrânea, a de Poirot, que nos vai mostrando que nem todos os "dados adquiridos" estão provados; nem tudo o que se assume imediatamente como óbvio foi de facto visto ou ouvido -mas simplesmente presumido.

E presumimos tanto; quando escutámos uma voz por detrás de uma porta fechada partimos do princípio de que alguém estava a falar com alguém. Quando vimos uma pessoa com a mão sobre a maçaneta da porta do gabinete, partimos do princípio de que essa pessoa estava a sair do gabinete, etc. etc.

Na dúvida metódica, cartesiana, em relação aos dados dos sentidos, Poirot torna-se, nesta obra-prima de Agatha Christie, um verdadeiro filósofo, que nos ensina a olhar para a realidade uma segunda vez. Há que pensar sem acreditar excessivamente no que vimos - ou no que julgamos que significa tudo o que fomos percepcionando...

3 comentários:

Teresa disse...

Tenho autêntica paixão por Agatha Christie, e como tal recomendo-lhe um livro de que já falei na Gota:

http://gotaderantanplan.blogspot.pt/2011/08/agatha-dearest.html

Curiosamente, este grande mistério que toda a vida rodeou a vida da autora e do qual ela sempre se recusou a falar, foi exactamente na época da publicação de O Assassinato de Roger Ackroyd.

Recomendo-lhe também Morte no Nilo (a construção daquele crime!) e aqueles que refiro no post. E ainda ficam tantos de fora!

Pedro disse...

Até me doeu algo só de pensar em ler este livro sabendo à partida quem é o assassino. Em qualquer outro seria mau, mas neste... Ainda hoje o tenho como um dos maiores "choques literários" que apanhei na vida.

E, realmente, se calhar devia relê-lo...

Cumprimentos

Miguel Pestana disse...

«Um bom romance policial deve ler-se pelo menos duas vezes.»

Concordo, porque já comprovei. E foi com um livro da Agatha também (minha autora de policiais preferida).


silenciosquefalam.blogspot.com