quinta-feira, 12 de abril de 2012

JOÃO RICARDO PEDRO: O TEU ROSTO SERÁ O ÚLTIMO






Há que falar com toda a sinceridade: comecei a leitura desta obra, com as expectativas manchadas pelo pecado radical do preconceito. Não me agradava o mito do jovem engenheiro que, subitamente lançado no desemprego, com tempo de sobra, desata, pela primeira vez na vida, a escrever umas coisas. Não o faz para dar voz a uma urgência de alma, a uma vocação profunda, a um gosto, sequer - fá-lo porque tem muito tempo e, já agora... O resto é bem conhecido: o romance ganhou o Prémio Leya, disseram-se dele exageros tão insuportáveis como: «Nunca um primeiro romance foi tão intenso», o autor foi capa do Expresso, de olhos nostálgicos e barba por fazer; entrevistaram-no; exibem-no.

Admito que neste preconceito houvesse alguns grãos de inveja. Ironizo, ou então antecipo previsíveis interpretações. Mas uma coisa é certa: não foi certamente a inveja que me impediu de, principiando a ler o romance de João Ricardo Pedro, perceber quase de imediato que se trata de um texto magnífico. Muito bem escrito, revelando aquele prazer da linguagem que caracteriza o melhor da literatura portuguesa, narra uma história a que nos prendemos pela surpresa e pelo afecto.

Um crítico chamava a atenção para a quase autonomia de cada um dos capítulos, como se as mesmas personagens fossem sendo retratadas em peças breves, descontínuas, como miniaturas ou como contos; mas isso é conversa fiada. Ao dizê-lo, arriscamo-nos, na minha óptica, a perder de vista o essencial. E o essencial é que, nessa aparente descontinuidade, nessa "autonomia" de cada um de vários contos, se ocultam linhas invisíveis, secretos nexos que só a partir de um certo ponto começam a manifestar-se, mostrando uma construção que tudo suporta desde o início e a cada passo. Mais do que isso, atentemos na precisão e complexidade dessas linhas, que solucionam problemas e esclarecem perguntas, sem peripécias forçadas nem coincidências abruptas. E mais ainda do que isso, atentemos em como nem mesmo essas linhas tudo solucionam, deixando em aberto questões que não conseguiremos esclarecer, mas que poderemos interpretar a nosso bel-prazer.

Para mim, há diversos pontos altos ao longo da narrativa [o episódio de início, com o aparecimento de um rapaz que perde o olho e a quem o olho de vidro devolve um rosto e uma alegria; ou o da prova de que os ciclistas nem precisam de sair da bicicleta para mijar; ou o do aparecimento do Índio; ou do esperma do Índio no sofá...], e um ponto máximo: o do surgimento de uma pintora sem perna que, na sala de um museu, em que dispôs o seu material, começa a pintar, reproduzindo, numa tela, em ponto grande, a imagem de uma outra mulher, também sem perna, de um quadro célebre. A imagem de uma mulher sem perna no seio de uma multidão variadíssima, ou seja, numa pintura em que ela estaria longe de ser o centro, a não ser, como acontece, que a isolássemos e todo o quadro, como por magia, passasse a ser lido a partir dessa figura.

É um livro cujas maravilhas não têm conta, quer no conteúdo, pela beleza e intensidade de cada uma dessas miniaturas, quer pelas linhas que as unem, quer na forma, por causa de uma escrita originalíssima, de raros saber e sabor. No caso, João R. Pedro faz, com a enumeração, sempre inesperada, quase ilógica, mas muito bela sempre, o mesmo tipo de revolução, no exercício do narrar, que Saramago fez a partir da pontuação. E nada disto me parece pouco.

3 comentários:

Miguel Pestana disse...

Olá José Pacheco,

Li já várias criticas a este livro e autor, mas a que acabo de ler é uma das melhores.

Gostei da sua frontalidade e humildade ao escrever o início texte texto.

A verdade é que há pessoas com dons que desconhecem possuir.

Será um livro que lerei em breve.

Um abraço

EfeitoCris disse...

Boa noite José

Incursões nocturna pela literatura originam coisas destas, deparármo-nos com novidades de que gostamos e este seu comentário é o caso.

Também li João Ricardo Pedro e gostei, aliás tb expôs o meu comentário.

Boas leituras

EfeitoCris disse...

José n resisti e tive de partilhar uma ideia sua...
amanhã, caso possa e queira confira, a partir das 13h ...
http://efeitodoslivros.blogspot.pt/
ou através do facebook
https://www.facebook.com/efeitodoslivros

Obrigada e boas leituras