terça-feira, 13 de setembro de 2011

ELOGIO DO REVISOR



Não sei há quanto tempo se estabeleceu como profissão o trabalho de rever as provas antes de se publicar um livro. O «meu» revisor, ou seja, a pessoa que reviu meticulosamente o romance Nada Mais e o Ciúme, sabê-lo-ia com certeza.

Trindade Coelho, em In Illo Tempore, conta a seguinte história que resumo de memória: num texto em que ele escrevera «dizia-se à saciedade», o tipógrafo emendou «saciedade» por «sociedade»; Trindade Coelho tornou a escrever «saciedade», e o tipógrafo alterou de novo. Até que, ao fim de duas ou três alterações e reposições, o autor falou com o homem, que lhe respondeu: «Ficará como o senhor doutor quiser, mas olhe que toda a gente sabe que se diz "sociedade", não "saciedade".» Existiriam já "revisores profissionais"? Ou era aos tipógrafos expeditos que cabia rever os textos?

Há livros mal revistos ou a que, mais provavelmente, tenha de todo faltado uma revisão. O autor pode ser extraordinário, mas a verdade é que se nota essa diferença. Uma distracção aqui, um desconhecimento ali, uma fragilidade acolá. Em contrapartida, qualquer romance melhora substancialmente se tiver passado pelas mãos de um revisor a sério. Talvez alguns escritores se sintam ameaçados. Não deviam. O revisor não é somente um homem que domina perfeitamente a língua, deve ser uma pessoa superiormente culta, que se passeia com grande à vontade por muitas esferas do saber. Com o "meu" revisor não só fui chamado a prestar atenção a pormenores de pontuação que me haviam escapado, como a erros de conteúdo relativos - por exemplo - aos poderes da raia [zoologia], às regras do sumo [desporto; cultura japonesa]. Detectou referências que eu discretamente fizera, sem querer ostentar, remetendo-as para Hitler [história, política internacional] ou para Nietzsche [filosofia], não, por sua vez, para se exibir, mas para me sugerir que contextualizasse de outro modo.

Em algumas das sugestões que fez pareceu-me evidente alguma ironia. Sobretudo quando se tratava de neologismos que eu ousava. A ironia fere-me, irrita-me. Como se uma mente mais culta ou mais inteligente do que a minha se divertisse à custa das limitações que revelo. Mas que querem? Há na competência e no rigor algo que se confunde facilmente com arrogância. Parece-nos sempre que as pessoas que realmente sabem e se indignam com as falhas que consideram "inadmissíveis" são pouco tolerantes.

Robert Conquest apresentou três leis da política, a primeira das quais determina que «toda a gente é de direita em relação àquilo que sabe melhor». Admito que o termo «direita» seja, aqui, muito ambíguo. Mas trata-se, explica-nos Scruton, de se mostrar «desconfiado em relação ao entusiasmo e à novidade e respeitoso para com a hierarquia, a tradição e os modos estabelecidos». Julgo, é claro, que em literatura, onde a originalidade não deixa de ser fundamental, qualquer apreciação enquistada num «respeito» fundamentalista pela «hierarquia» e pela «tradição» possa pecar por obtusidade. Vasto é o campo onde a visão do artista tem de se impor - e se vale alguma coisa, caberá ao futuro julgar, mais do que ao revisor. Mas mesmo assim. É talvez este critério de pouca abertura que torna, os bons revisores, profissionais escrupulosos e impacientes com os erros.

Perante um revisor como aquele que trabalhou sobre o meu texto, sinto-me frágil e embaraçado. Chego a pensar: «Mas afinal eu não sei escrever.» Todavia, dois minutos após termos concluído a nossa reunião, percebo que o romance que eu escrevera está agora muito melhor, muito mais sólido na forma e com menos imprecisões no conteúdo. Quase - ocorre-me - como se tivesse sido escrito em co-autoria. E agradeço não sei bem a quem ou a quê [ao destino, talvez], que, mais do que o facto de escrever um romance que foi sujeito a uma revisão, esta fosse feita por um revisor de primeira.

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