sexta-feira, 19 de novembro de 2010

VITORINO NEMÉSIO: MAU TEMPO NO CANAL



Já o disse: não existem muitos livros que me dedique a reler integralmente. Por estranho que pareça, há uma obra que, sim, releio, ou que vou relendo: devagar, como não poderia deixar de ser, pari passu, sem urgência, ao acaso das possibilidades: Em Busca do Tempo Perdido. Outra é Viagem ao Fim da Noite, do imprevisível Céline. Bem, há algumas mais: aquelas que me foram emprestados pelo meu primo, em inglês, e vim a reler, anos mais tarde, em traduções portuguesas: The Catcher in the Rye, Uma Casa para Mr. Biswas, Margarida e o Mestre, A História Secreta.

Há casos portugueses? Lembro-me de um: Mau Tempo no Canal. Vitorino Nemésio.

Ao tempo em que o Professor tinha, na televisão, um programa que marcou o país, com as suas digressões aparentemente desconexas, que seguiam, porém, um fio perfeito, que tudo religava e concluía, vivia ainda eu em Moçambique. Vejo revisitações da sua prestação televisiva, e delicio-me com aquela excentricidade, no mais nobre sentido da palavra.

Li Mau Tempo no Canal já tarde na vida. E devorei a obra enorme, sobre famílias numerosas, nas ilhas sublimes, entre o paradisíaco e o inclemente. Mas, quando se tem vinte anos, lê-se a obra da mesma forma que as ilhas: como um romance paradisíaco e inclemente, cheio de momentos inesquecíveis, de uma beleza que me tocou, e de paisagens (ou deveria escrevever "passagens"?) demoradas e cansativas. Aos quarenta anos, contudo, reli-a e fiquei sem palavras. Casualmente, comprei recentemente uma edição de bolso. Olhava para ela todas as noites, sempre com vontade de a (re)iniciar. Abri-a hoje. Sentei-me, de sofá em sofá, em busca de melhor luz. E, logo na primeira página:

«Os olhos de Margarida tinham um lume evasivo, de esperança que serve a sua hora

E:
«[João Garcia] entrava em pormenores. Margarida ouvia-o agora vagamente distraída, de cabeça voltada às nuvens, como quem tem uma coisa que incomoda no pescoço, um mau jeito

Ou:
«Estavam ao alcance da respiração um do outro

Isto por exemplo, porque todo o romance é feito desta poesia que se debruça sobre as mínimas descrições, como a de um som errado e característico («o grande portão verde de padieira grossa, que ao abrir bem atrás, devido a uma posição mal calculada, batia na borda da sineta arrematada do naufrágio de um veleiro»), como a das paisagens, feitas em miscelâneas de paz e de guerra, como a das personagens, que nunca são bonecos de cartolina no meio de um cenário de opereta.

Neste Romeu e Julieta, que decorre entre 1917 e 1919, encontramos a captação dramática de uma época e de uma sociedade de classes, fortemente hierarquizada e conflituosa; e encontramos algo que vejo frequentemente referido a propósito de outros romances de autores açoreanos: a consciência aguda da insularidade: uma ruptura iminente com os amados que demandam o continente, a saudade, a lonjura; a pequenez do seu espaço, sempre em face de grandezas incomensuráveis e terríveis, o mar, o céu, a tempestade. Mas é claro que, se vos dissesse que estas foram as dimensões que mais me impressionaram no romance de Nemésio, não poderia estar a ser sincero. Nunca li Mau Tempo no Canal como um Tratado de Sociologia ou de História. É como compreensão psicológica que a história da luta e do cruzamento entre famílias, ao longo do tempo, me entusiasma. E estas personagens são todas: muitas das mais secundárias parecem-me maravilhosas, nos pequenos tiques, nas suas tendências (veja-se, entre outros, dois dos irmãos Garcia, Henriqueta e Ângelo), nos seus recalcamentos, na senilidade ou na maldade.

É um texto excêntrico, como o seu autor: divaga porém reencontra a marcha; parece escapar de qualquer eixo e, contudo, deixa-nos, em cada ponto, dúvidas que nos fazem fome para iniciar o capítulo seguinte. É um texto brilhante: no tema, na estrutura, na complexidade, na simplicidade em que essa complexidade se resolve: considero Mau Tempo no Canal, juntamente com Sinais de Fogo (Jorge de Sena) e Um Amor Feliz (David Mourão-Ferreira), o livro maior de um trio absolutamente fundamental na literatura portuguesa contemporânea.

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