Na minha qualidade de leitor, faço uma demarcação entre livros «fáceis», que se lêem de uma assentada (e, contudo, não são necessariamente maus) e livros «difíceis», nos quais demoramos a entrar, quanto mais a conseguir habitar.
Não excluo à partida um livro por uma ou por outra destas razões. Há momentos em que não tolero os que exigem demasiado de mim: socorro-me então dos outros; não os enjeito; divertem-me, refrescam-me, estimulam-me.
Mas é verdade - e digo-o com toda a convicção - que nenhum livro fácil poderá alguma vez oferecer a intensidade e a variedade das experiências de um romance que tenhamos de rasgar e desvendar; que precisemos de muito tempo para com ele ficarmos em sintonia; em que não possamos, por exemplo, saltar descrições porque, aí, as descrições são parte da fruição; em que não seja possível conformarmo-nos sem sobressalto com a linguagem, ou, pelo contrário, fazer de conta que esta não está lá, porque a própria linguagem é, neles, uma música sinalizada por promessas que se vão cumprindo em espanto e prazer.
Deste ponto de vista, encaro A la Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust (que é um texto longo e dificílimo), como o maior e o mais belo de todos os romances que conheço, sejam eles fáceis ou difíceis. Alguma vez terei coragem para partilhar, com os leitores deste blogue, a euforia de mergulhar na memória de Marcel, narrador e personagem de Marcel Proust.
Hoje, venho falar de duas obras - e de dois autores - que julgo «difíceis»: não os recomendaria a quem não goste muito de ler, nem as recomendaria a quem aprecie ler unicamente por uma «certa» razão e não por todas as razões que fazem da leitura em si mesma um enorme e renovado encanto.
Um dos livros é Vida e Opiniões de Tristram Shandy, da autoria de Laurence Sterne.
O outro é O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.
Em Sterne, começa por me maravilhar que um homem do século XVIII possuísse já, tão antecipadamente, tão avant-la-lettre, essa capacidade de inovar na escrita, de reinventar a linguagem e a criação em moldes que, aos menos advertidos, pode parecer que só viriam a ser ousados no século XX. Impressionam-me a sua ausência de respeito pelos paradigmas canónicos da literatura da época, que revira do avesso - logo desde a dedicatória, a bem dizer -, a sua criação de um anti-herói, numa saga em que tudo é frustração e ridículo e, sobretudo, o seu divertido e singularíssimo exercício da digressão na narrativa, com consequências tão extraordinárias para o todo da obra em causa, a que, aliás, tornaremos.
Por outro lado, em Musil, tudo é precioso: a escrita rigorosa e cruel, em que Gonçalo M. Tavares tanto - obviamente - bebeu, de uma precisão matemática mas, simultaneamente, tocado de uma imaginativa vivacidade no seu tom quase aforístico; o vago sabor a pecado que emana daquelas páginas percorridas por um erotismo e uma sensualidade dramáticos (a que, já agora, também me não parece que Gonçalo M. Tavares tenha permanecido indiferente); mas, principalmente, as personagens e, entre elas, o próprio homem sem qualidades, esse Ulrich com o qual tantas vezes me identifiquei - e identifico - no seu grau zero de qualidades, que significa, ao mesmo tempo, uma falta de traços de personalidade demasiado fortes, vincados, vinculativos, que o caracterizem, uma abertura e uma disponibilidade para usar de todos os traços, para assumir os mais incompatíveis aspectos, para ir escolhendo ser, ao sabor da vida e do desejo, livre e gratuitamente, alto e baixo, bom e mau e assim-assim, cientista e anti-científico, indiferente e ciumento, revolucionário e conservador, tímido, exibicionista, numa perpétua aventura em que «nada do que é humano» lhe seja vedado.
Se hoje aqui junto estes dois livros «difíceis» é porque, em ambos, a dificuldade resulta de uma ideia genial dos seus autores. E esse par de ideias torna-se, em cada um dos casos, o centro do texto - ou, se preferirmos ser mais exactos, a impossibilidade de um qualquer centro a que nos atenhamos. Seja, em Sterne, a magnífica digressão onde, a propósito do que quer que nos conte, se sente compelido a contar qualquer outra coisa, ou onde, a propósito de um episódio, terá de nos apresentar os seus antecedentes, e os antecedentes dos antecedentes, e assim ad infinitum, de tal modo que em vez de progredir, a narrativa vai regredindo sempre, impedida de avançar e onde, portanto, nunca chegamos ao termo...(a simples descrição do seu nascimento vai sendo sucessivamente suspensa, à medida que novos episódios anteriores se vão multiplicando e ligando entre si; e lembro-me que a lenta descida de uma escadaria, feita pelo seu pai e pelo seu tio, enquanto conversam, leva talvez um capítulo inteiro a ser narrada ); seja, no romance de Musil, a concepção da fantástica «Acção Paralela»: organização com uma função tão simples como a de planear uma certa comemoração patriótica - a qual reúne a nata das Artes e da Religião, da Ciência e das Finanças; mas, ao longo do tempo, de reunião em reunião, na divagação e na conversa, disparando novas e infinitas possibilidades, nada consegue decidir ou escolher, num exemplo extraordinário de uma «dialéctica do retardamento» e do adiamento, que nunca poderá realizar nem passar à prática coisa alguma! Uma organização de acção, que nunca age, que nunca pratica, que não dá passos, eis o que está no fundo e no fundamento de todo um gigantesco romance...
São obras que, frequentemente, cansam? Sem dúvida. E têm de ser intercaladas? É claro. Que podemos passar semanas sem provar? Eu sei. Mas o bem que nos sabem, o riso que nos sacode no seu convívio, a delícia com que as mastigamos e remoemos demoradamente, o interesse e a reflexão que, ao abri-las, sentimos que aquelas páginas estimulam, elevando-nos a um patamar superior do espírito, são razões que compensam o trabalho que requerem.
domingo, 9 de agosto de 2009
terça-feira, 4 de agosto de 2009
DONNA TARTT: A HISTÓRIA SECRETA
Podem perguntar: Mas este possidónio só aprecia autores vergados ao peso de um prestígio clássico? Só lê dos Dostoievski para cima? Não relaxa, não alivia? Não conhece o inconfessável prazer de um mau romance, não se diverte com um policial? Não faz férias do snobismo?
Curiosamente, o livro a propósito do qual, e por antítese, escrevi esta introdução é ainda, de algum modo, um clássico. Um clássico muito mais recente mas, apesar de tudo, não de última hora: publicado em 1992, A História Secreta conheceu rapidamente o destino dos livros bem vendidos. Mais: numa pesquisa que fiz brevemente pela internet, em busca, sobretudo, de uma ou duas fotografias com que pudesse ilustrar o meu texto, tropecei em fanáticos deste romance que, aprisionando-o, como abutres, insistem em lhe dissecar «as influências evidentes» de Dostoievski ou Tolstoi.
Mas - e principia neste pormenor a diferença em relação às outras obras sobre que tenho aqui escrito - A História Secreta é um romance policial. Aproveito para deixar registado que, a meu ver e ao contrário da opinião generalizada , os «policiais» e a «ficção científica» não constituem uma leitura menor. Pelo contrário: encontram-se, entre os seus autores, alguns dos escritores mais inteligentes e cultos que poderemos conhecer... (Esta autora é, aliás, um bom exemplo!)
O romance de que vos falo, da autoria da notável Donna Tartt (a quem o meu primo e eu gostávamos de chamar senhora «dona Tarte»; que, durante muitos e ingénuos anos, julguei que tinha de ser uma eterna velhinha, dada aos gatos, ao crime e ao mistério, para descobrir agora que se trata de uma mulher mais jovem do que eu próprio e, como podem confirmar pelas respectivas fotografias, bem mais bonita do que eu), esse romance, dizia, tem desde logo de extraordinário o facto de se desenvolver ao longo de 699 páginas - na tradução portuguesa, pelo menos -, principiando por expor quem morreu, como morreu e quem o assassinou. E interrogamo-nos: Se começamos pela revelação do desfecho, ou do que deveria ser o desfecho, que raio haverá ainda por descobrir nas restantes 698 páginas?
Ora vejam esse, dir-se-ia, precipitado abrir do pano:
«A neve na montanha estava a derreter e Bunny já tinha morrido há várias semanas quando tomámos consciência da gravidade da nossa situação. Já estava morto há vários dias quando foi encontrado, estão a ver. [...] Custa a crer que um plano tão modesto como o de Henry tenha sido tão bem sucedido apesar destes acontecimentos imprevistos. Não era nossa intenção esconder o corpo de maneira a não ser descoberto. A verdade é que nem o tínhamos tentado esconder, limitáramo-nos a abandoná-lo na esperança de que algum transeunte desafortunado viesse a tropeçar nele antes que alguém desse pela sua falta.»
Porém, agradava-vos que eu prolongasse a citação por mais umas quantas linhas, não é verdade? Ora aí está o segredo de Donna Tartt: mais do que nos questionarmos sobre o que falha, ou sobre o espanto de estarmos em face de um excesso de informação, damos por nós a ler ávida e desenfreadamente, presos como a uma droga implacável, voltando nervosamente páginas atrás de páginas.
Vou, aliás, fazer-vos (e a mim) o gosto ao dedo, e transcrever um episódio que considero magnífico no seu suspense, que é o do momento em que Bunny (que já sabemos que virá a ser a vítima) encontra, na floresta, os amigos que o iriam assassinar:
«Relanceei os olhos para cima e vi Charles. Estava mesmo à minha frente com uns olhos esgazeados e uma expressão medonha. Ia eu perguntar o que é que se passava com ele quando, num assomo agoniado de incredulidade e espanto, ouvi a voz de Bunny mesmo atrás de mim.
«Ora vejam só», disse ele. «Mas que diabo vem a ser isto? Alguma reunião dos amigos da Natureza?»
«Eu virei-me. Era mesmo o Bunny, em todo o seu metro e noventa, erguendo-se atrás de mim num impermeável amarelo tremendo que lhe vinha quase até aos pés.
«Seguiu-se um silêncio insuportável».
A História Secreta é um romance que se entranha nos nervos e não sei por que não terá sido transposto para o cinema, apesar do seu desenrolar neurótico; apesar das cenas povoadas de sinais trágicos; de avisos surdos e profecias tenebrosas, apesar do clima que se vai adensando num singularíssimo cruzamento entre as vozes secretas de Sófocles, Nietzsche e Hitchcock.
A História Secreta reúne muitos dos ingredientes que, do meu ponto de vista, fazem de um texto romanesco, simultaneamente, uma obra de arte no sentido mais nobre da palavra e um romance interessante, imperdível e magnetizante para o leitor: uma escrita cuidada e bela, mas nunca obscura, o ambiente académico, que me fascina, a presença de um professor, em grande medida marginal ao sistema, que cativa um grupo de alunos que se consideram discípulos eleitos, o companheirismo forte e aparentemente indestrutível que os une, o gosto deste grupo restrito e esotérico por um saber secreto, que remete para as antigas seitas órficas, o respirar permanente e quase audível, portanto, do amor pelo helenismo grego, a terrível perfídia da chantagem e personagens densas e contraditórias - inesquecíveis...
É o caso de Julian Morrow, o professor. Ou de Henry, de personalidade forte e apaixonada mas austera. Mas é, também, o de Bunny, «em todo o seu metro e noventa», carente e ansioso, trapaceiro e chantagista, folgazão e cansativo, exasperante, ridículo e ameaçador. Considero absolutamente impagável a cena em que Bunny convida para almoçar Richard Papen, o narrador, numa altura em que este se sente particularmente fragilizado porque acabou de chegar à universidade e é ainda, aos olhos de todos, um intruso sem interesse, e, após a lauta refeição, descobre, entre frenéticos apalpanços do bolso que, «oh diabo, meu velho!», parece que não trouxera a carteira.
Apetecia-me citar.
Se calhar, aos meus leitores apetecia que eu citasse.
Nááá! Deixo-vos incólume o prazer de encontrar e gozar o episódio!
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
M.S. LOURENÇO: OS DEGRAUS DO PARNASO
Abro o jornal do dia e, numa discretíssima página onze - como tão discreta foi a sua vida pública ou o público reconhecimento do seu trabalho filosófico ou poético -, leio e tomo consciência de que morreu M. S. Lourenço, que teria sido, segundo o título feliz, «o filósofo e poeta "notável" que Portugal não chegou a conhecer».
M. S. Lourenço foi meu bizarro professor, na Universidade de Lisboa, da cadeira de Lógica, uma disciplina com a qual nunca me dei muito bem academicamente. «Nem na vida», costuma acrescentar um amigo que não valoriza especialmente a lógica dos actos ou decisões que tomo.
Enquanto professor de filosofia, M. S. Lourenço tinha dificuldade em criar empatia com aquela numerosa assembleia de alunos reunidos num anfiteatro: usava um tom inaudível, colocava-se muitas vezes de costas para nós, murmurando mais do que falando, escrevendo continuamente, no quadro, já me não lembro que vertiginosas demonstrações segundo as leis de Leibniz. Mais do que a lógica que vinha explicar-nos, fixava-lhe a indumentária entre o discreto e o exuberante, se é que isto faz algum sentido: fato negro, de corte simples, mas sobre camisas de punhos e golas com folhos, por exemplo, que o próprio Rei Sol não desdenharia.
Descobri-o com gosto e interesse mais tarde, muito mais tarde. O culpado da redescoberta foi um objecto único, incomparável, quase secreto, resguardado da profanação de mãos ávidas, esperando por uns quantos eleitos que o respeitassem devidamente. Ou seja, aquilo a que, com propriedade, poderíamos chamar um «objecto de culto». Esse objecto de culto é um livro. O seu nome é Os Degraus do Parnaso.
Reunindo, em 1991, a sua colaboração para o Colóquio/letras e, principalmente, para o jornal Independente, este livro, que trato como um invulgar objecto de Arte, síntese perfeita de erudição e elegância de estilo, misto de ensaio, crítica e crónica, tem o dom de (e)levar o leitor numa viagem ou numa sucessão de viagens em que o saber e a reflexão não pesam, em que nunca são excessivas nem inoportunas as visitas aos mais diversos autores e obras da humanidade, da filosofia, da poesia ou do romance à pintura e à música; convivendo com Kant, Eça, Baudelaire, Verlaine, Cesário, Proust, Rilke, Nietzsche, Pessanha, Pound, Pessoa, Coleridge, Wilde, Wittgenstein, Mann, Duras, Hals, Moreau, Beardsley, Klimt, Beethoven, Wagner, Berlioz, Paganini, Brahms, Schönberg, Stockhausen, entre muitos; ou visitando as personagens daqueles que, entre estes, eram escritores e as criaram, personagens a que M. S. Lourenço se refere como se fossem de carne e osso (consciente de que de algum modo o são): Salomé e Flávia, Harold, Fradique, a viúva de Pacheco, Swann, a duquesa de Guermantes, Bergotte, Adrian Leverkühn, a sra. Von Tümmler; ou, por fim, evocando pessoas efectivamente de carne e osso que se lhe foram cruzando na vida, intrigantes e nem sempre congruentes: as prostitutas do Cacém (porque as via de caminho, não porque as frequentasse...), o escultor Paulo Espada, o major Capelo, o capitão Jorge Pais...
Foi-me grato descobrir este insuspeitado (na altura, para mim) interesse pela estética por parte de um professor de lógica, aparentemente fechado e desprovido de emoções. O seu exaustivo conhecimento da música leva a um convite, a ela ligado e que perpassa por todas as páginas: um retorno à grandeza e ao poder do ouvido e da escuta como formas privilegiadas de compreensão do universo. Porque o ouvido teria vindo a ser praticamente recalcado por esta civilização, que lhe preferiu desde cedo o «olhar»: é uma teoria muito forte, que reconduz aos pitagóricos, os quais sabiam muito bem que a música é, mais do que diversão, um caminho para a verdade: a «escuta» pode ser tão ou mais importante do que o «ver» no desvendar do segredo do mundo.
domingo, 2 de agosto de 2009
PIERRE BAYARD: COMO FALAR DOS LIVROS QUE NÃO LEMOS?
Tenho um amigo de há muitos anos, rapaz culto e inteligentíssimo, o qual, porém, não é e nunca foi dado a extensas leituras.
Acho, por isso mesmo, particularmente curiosa a convicção com que ele fala sempre, em grupo, acerca de livros; insisto: de livros que nunca leu!
Não necessariamente entre nós, claro, velhos amigos que o conhecem bem e, a meio de um argumento seu sobre certa obra em discussão, acabamos sempre por lhe perguntar: «Ouve, mas por acaso já leste isto?»; interessam-me e divertem-me, sobretudo, os relatos que o próprio faz acerca do respeito com que a sua crítica é acolhida; a facilidade com que, entre colegas, parece mudar a opinião que se generalizara a propósito de um qualquer romance; a forma como até já o procuram para se aconselharem sobre leituras...
Este meu amigo poderia tirar partido (se, precisamente, lesse alguma coisa) de um livro mais interessante do que o título levaria a crer: Como Falar dos Livros que Não Lemos.
Tudo indica que o livro em causa tenha sido interpretado literalmente. Noto, por exemplo, que na tradução que comprei, cheio de curiosidade [e, confesso, com alguma vergonha por ter de pagar e pedir que me embrulhassem um livro com um nome tão suspeito], um pequeno autocolante vermelho informa: Nº 1 Top Vendas França. Não tenho dúvidas de que entre esses compradores franceses que o tornaram num best-seller, estariam muitos pretensiosos prontos a aprender truques para falar do que não conhecem. É também o que me faz pensar a crítica veementemente indignada de um brasileiro chamado Evandro Venâncio, que se refere ao autor como imbecil.
Ora trata-se, pelo contrário, de um dos mais inteligentes livros sobre livros, que pude ler nos últimos anos. Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura na faculdade, dificilmente poderia, a não ser num exercício irónico, recusar o interesse e a importância - e o prazer - do acto de ler. Por outro lado, bastaria que se folheassem as primeiras páginas para que, entre referências e citações, se percebesse não só que Pierre Bayard é um leitor compulsivo, atento e conhecedor, como, mais do que isso, esconde, sob o título enganador, uma das obras mais ricas e bem-sucedidas no ingrato trabalho de convidar à leitura. O modo como fala de Musil, Valéry, Oscar Wilde ou Umberto Eco, por exemplo, ou o modo apaixonado e apaixonante como nos expõe os traços principais de, entre outros, um livro chamado Ferdinaud Céline, de Pierre Siniac [livro e autor que me eram, até então, perfeitamente desconhecidos, mas não relaxarei enquanto não estiverem absorvidos no meu horizonte] mostram bem que se trata de uma outra coisa, que não auxiliar idiotas a parecer mais inteligentes do que são.
Por fim, a teoria de Bayard pode ser entendida, se lhe quisermos detectar um alcance maior do que o da mera ironia, como uma crítica pertinente a uma certa imagem do «leitor por obrigação» em que muitos intelectuais se revêm; uma crítica aos sistemas de ensino que, do secundário ao universitário, fazem da «leitura» o contrário de um prazer - um metódico e obstinado coleccionar de dados, nomes, histórias, o burocrático montar de uma máquina de obras a «consumir»: contra essa ideologia inerente ao leitor académico, Bayard lembra - e com razão - que, do conjunto do que consideramos as «nossas leituras», fazem parte os LP (livros somente percorridos), os LE (livros esquecidos), os livros de que ouvimos falar, ou aqueles sobre os quais averiguámos já tanto que é como se os tivéssemos lido. E ensina que, ao invés de um modelo único da leitura como sacrifício e obrigação, todos estes recursos constroem, na sua liberdade um pouco delirante, outras tantas formas do prazer, mais que de simplesmente «ler», nos interessarmos, e aproximarmos, e cultivarmos, e gozarmos os livros.
Pessoalmente, para que essa ideia faça todo o sentido, basta-me pensar que é um pouco num cruzamento de todas estas possibilidades, precisamente, que considero, digamos a Bíblia como sendo um dos livros que li, ou que desfrutei: mas a Bíblia que conheço, porventura com profundidade, é a das parábolas que escutei na catequese ao Padre Baptista; é a das infinitas histórias e lições que a minha mãe constantemente reproduzia; é a Bíblia épica que reencontro em filmes; a Bíblia que, por vezes, percorro, detendo-me numa passagem ou outra, mas nunca terei lido nem creio que venha a ler, num acto contínuo e devoto, da primeira à última linha...
Nada melhor do que deixar-vos com os títulos desconcertantes dos dois primeiros capítulos do livro de Bayard:
I: Os Livros que Não se Conhecem: Onde o Leitor Verá que É Menos Importante Ler Este ou Aquele Livro (O que É Uma Perda de Tempo), do que Ter Sobre a Totalidade dos Livros o que Uma Personagem de Musil Chama Uma «Visão de Conjunto».
II: Os Livros que Percorremos: Onde Vemos, com Valéry, que Basta Dar Uma Vista de Olhos a Um Livro para lhe Consagrar um Artigo Inteiro e que Até É Inconveniente Proceder de Outro Modo no que Respeita a Certos Livros.
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