domingo, 2 de agosto de 2009

PIERRE BAYARD: COMO FALAR DOS LIVROS QUE NÃO LEMOS?



Tenho um amigo de há muitos anos, rapaz culto e inteligentíssimo, o qual, porém, não é e nunca foi dado a extensas leituras.

Acho, por isso mesmo, particularmente curiosa a convicção com que ele fala sempre, em grupo, acerca de livros; insisto: de livros que nunca leu!

Não necessariamente entre nós, claro, velhos amigos que o conhecem bem e, a meio de um argumento seu sobre certa obra em discussão, acabamos sempre por lhe perguntar: «Ouve, mas por acaso já leste isto?»; interessam-me e divertem-me, sobretudo, os relatos que o próprio faz acerca do respeito com que a sua crítica é acolhida; a facilidade com que, entre colegas, parece mudar a opinião que se generalizara a propósito de um qualquer romance; a forma como até já o procuram para se aconselharem sobre leituras...

Este meu amigo poderia tirar partido (se, precisamente, lesse alguma coisa) de um livro mais interessante do que o título levaria a crer: Como Falar dos Livros que Não Lemos.

Tudo indica que o livro em causa tenha sido interpretado literalmente. Noto, por exemplo, que na tradução que comprei, cheio de curiosidade [e, confesso, com alguma vergonha por ter de pagar e pedir que me embrulhassem um livro com um nome tão suspeito], um pequeno autocolante vermelho informa: Nº 1 Top Vendas França. Não tenho dúvidas de que entre esses compradores franceses que o tornaram num best-seller, estariam muitos pretensiosos prontos a aprender truques para falar do que não conhecem. É também o que me faz pensar a crítica veementemente indignada de um brasileiro chamado Evandro Venâncio, que se refere ao autor como imbecil.

Ora trata-se, pelo contrário, de um dos mais inteligentes livros sobre livros, que pude ler nos últimos anos. Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura na faculdade, dificilmente poderia, a não ser num exercício irónico, recusar o interesse e a importância - e o prazer - do acto de ler. Por outro lado, bastaria que se folheassem as primeiras páginas para que, entre referências e citações, se percebesse não só que Pierre Bayard é um leitor compulsivo, atento e conhecedor, como, mais do que isso, esconde, sob o título enganador, uma das obras mais ricas e bem-sucedidas no ingrato trabalho de convidar à leitura. O modo como fala de Musil, Valéry, Oscar Wilde ou Umberto Eco, por exemplo, ou o modo apaixonado e apaixonante como nos expõe os traços principais de, entre outros, um livro chamado Ferdinaud Céline, de Pierre Siniac [livro e autor que me eram, até então, perfeitamente desconhecidos, mas não relaxarei enquanto não estiverem absorvidos no meu horizonte] mostram bem que se trata de uma outra coisa, que não auxiliar idiotas a parecer mais inteligentes do que são.

Por fim, a teoria de Bayard pode ser entendida, se lhe quisermos detectar um alcance maior do que o da mera ironia, como uma crítica pertinente a uma certa imagem do «leitor por obrigação» em que muitos intelectuais se revêm; uma crítica aos sistemas de ensino que, do secundário ao universitário, fazem da «leitura» o contrário de um prazer - um metódico e obstinado coleccionar de dados, nomes, histórias, o burocrático montar de uma máquina de obras a «consumir»: contra essa ideologia inerente ao leitor académico, Bayard lembra - e com razão - que, do conjunto do que consideramos as «nossas leituras», fazem parte os LP (livros somente percorridos), os LE (livros esquecidos), os livros de que ouvimos falar, ou aqueles sobre os quais averiguámos já tanto que é como se os tivéssemos lido. E ensina que, ao invés de um modelo único da leitura como sacrifício e obrigação, todos estes recursos constroem, na sua liberdade um pouco delirante, outras tantas formas do prazer, mais que de simplesmente «ler», nos interessarmos, e aproximarmos, e cultivarmos, e gozarmos os livros.

Pessoalmente, para que essa ideia faça todo o sentido, basta-me pensar que é um pouco num cruzamento de todas estas possibilidades, precisamente, que considero, digamos a Bíblia como sendo um dos livros que li, ou que desfrutei: mas a Bíblia que conheço, porventura com profundidade, é a das parábolas que escutei na catequese ao Padre Baptista; é a das infinitas histórias e lições que a minha mãe constantemente reproduzia; é a Bíblia épica que reencontro em filmes; a Bíblia que, por vezes, percorro, detendo-me numa passagem ou outra, mas nunca terei lido nem creio que venha a ler, num acto contínuo e devoto, da primeira à última linha...

Nada melhor do que deixar-vos com os títulos desconcertantes dos dois primeiros capítulos do livro de Bayard:

I: Os Livros que Não se Conhecem: Onde o Leitor Verá que É Menos Importante Ler Este ou Aquele Livro (O que É Uma Perda de Tempo), do que Ter Sobre a Totalidade dos Livros o que Uma Personagem de Musil Chama Uma «Visão de Conjunto».

II: Os Livros que Percorremos: Onde Vemos, com Valéry, que Basta Dar Uma Vista de Olhos a Um Livro para lhe Consagrar um Artigo Inteiro e que Até É Inconveniente Proceder de Outro Modo no que Respeita a Certos Livros.

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