segunda-feira, 3 de agosto de 2009

M.S. LOURENÇO: OS DEGRAUS DO PARNASO


Abro o jornal do dia e, numa discretíssima página onze - como tão discreta foi a sua vida pública ou o público reconhecimento do seu trabalho filosófico ou poético -, leio e tomo consciência de que morreu M. S. Lourenço, que teria sido, segundo o título feliz, «o filósofo e poeta "notável" que Portugal não chegou a conhecer».

M. S. Lourenço foi meu bizarro professor, na Universidade de Lisboa, da cadeira de Lógica, uma disciplina com a qual nunca me dei muito bem academicamente. «Nem na vida», costuma acrescentar um amigo que não valoriza especialmente a lógica dos actos ou decisões que tomo.

Enquanto professor de filosofia, M. S. Lourenço tinha dificuldade em criar empatia com aquela numerosa assembleia de alunos reunidos num anfiteatro: usava um tom inaudível, colocava-se muitas vezes de costas para nós, murmurando mais do que falando, escrevendo continuamente, no quadro, já me não lembro que vertiginosas demonstrações segundo as leis de Leibniz. Mais do que a lógica que vinha explicar-nos, fixava-lhe a indumentária entre o discreto e o exuberante, se é que isto faz algum sentido: fato negro, de corte simples, mas sobre camisas de punhos e golas com folhos, por exemplo, que o próprio Rei Sol não desdenharia.

Descobri-o com gosto e interesse mais tarde, muito mais tarde. O culpado da redescoberta foi um objecto único, incomparável, quase secreto, resguardado da profanação de mãos ávidas, esperando por uns quantos eleitos que o respeitassem devidamente. Ou seja, aquilo a que, com propriedade, poderíamos chamar um «objecto de culto». Esse objecto de culto é um livro. O seu nome é Os Degraus do Parnaso.

Reunindo, em 1991, a sua colaboração para o Colóquio/letras e, principalmente, para o jornal Independente, este livro, que trato como um invulgar objecto de Arte, síntese perfeita de erudição e elegância de estilo, misto de ensaio, crítica e crónica, tem o dom de (e)levar o leitor numa viagem ou numa sucessão de viagens em que o saber e a reflexão não pesam, em que nunca são excessivas nem inoportunas as visitas aos mais diversos autores e obras da humanidade, da filosofia, da poesia ou do romance à pintura e à música; convivendo com Kant, Eça, Baudelaire, Verlaine, Cesário, Proust, Rilke, Nietzsche, Pessanha, Pound, Pessoa, Coleridge, Wilde, Wittgenstein, Mann, Duras, Hals, Moreau, Beardsley, Klimt, Beethoven, Wagner, Berlioz, Paganini, Brahms, Schönberg, Stockhausen, entre muitos; ou visitando as personagens daqueles que, entre estes, eram escritores e as criaram, personagens a que M. S. Lourenço se refere como se fossem de carne e osso (consciente de que de algum modo o são): Salomé e Flávia, Harold, Fradique, a viúva de Pacheco, Swann, a duquesa de Guermantes, Bergotte, Adrian Leverkühn, a sra. Von Tümmler; ou, por fim, evocando pessoas efectivamente de carne e osso que se lhe foram cruzando na vida, intrigantes e nem sempre congruentes: as prostitutas do Cacém (porque as via de caminho, não porque as frequentasse...), o escultor Paulo Espada, o major Capelo, o capitão Jorge Pais...

Foi-me grato descobrir este insuspeitado (na altura, para mim) interesse pela estética por parte de um professor de lógica, aparentemente fechado e desprovido de emoções. O seu exaustivo conhecimento da música leva a um convite, a ela ligado e que perpassa por todas as páginas: um retorno à grandeza e ao poder do ouvido e da escuta como formas privilegiadas de compreensão do universo. Porque o ouvido teria vindo a ser praticamente recalcado por esta civilização, que lhe preferiu desde cedo o «olhar»: é uma teoria muito forte, que reconduz aos pitagóricos, os quais sabiam muito bem que a música é, mais do que diversão, um caminho para a verdade: a «escuta» pode ser tão ou mais importante do que o «ver» no desvendar do segredo do mundo.

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