quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

HERMAN MELVILLE: MOBY DICK



Os livros lidos na infância e na adolescência permanecem em nós como envoltos em neblina. Passam a fazer parte de uma certa mitologia: tornam-se referências, mesmo que nos esqueçamos do conteúdo da obra. Sou capaz de falar acerca de Gulliver; sei que o li, mas não me lembro quando, nem como, nem onde. Tenho imagens de personagens ou de episódios fundamentais, mas não me recordo do momento em que os descobri propriamente no acto de os ler.

Aparentemente, o mesmo em relação a Moby Dick. Julgava possuir referências, muito mais do que a memória de um conteúdo, e no entanto, relendo agora o romance, tantos anos volvidos, percebo que o texto não estava apagado em mim; é a sensação de voltar a si próprio: como no regresso a uma casa de infância, ou como o emigrante que visita a sua pátria.

Eu mudei.
Retorno diferente à obra, é claro.
Não sou o mesmo.
O meu olhar apurou-se, tornou-se mais exigente, incorporou variadas mediações.
Sim, posso descobrir mais naquele texto, por exemplo a discretíssima insinuação de uma relação homossexual, ou o sentido de uma fraternidade que apreende a essência humana una para além de todas as diferenças culturais: aquilo para que hoje se reserva, abusiva e estupidamente, o termo "tolerância"; posso estar mais desperto para o humor de que está impregnada a observação de comportamentos excêntricos [não só de Queequeg, não só do próprio Ahab - que aliás é mais sinistro do que engraçado -,  mas atente-se no impagável estalajadeiro, atente-se no saboroso saber do pregador]; posso sentir um arrepio de prazer ante os comentários judiciosos do narrador; e, sobretudo, posso agora aquilatar de outro modo a sublimidade trágica que move o capitão Ahab em direcção à baleia branca - isto é, posso compreender o que sempre ouvira dizer, que Moby Dick é muito mais do que um romance de aventuras: é uma reflexão ética, a narração simbólica da digladiação entre o Bem e o Mal, na experiência de uma vida que se entrega inteiramente a uma obsessão maligna.

Mas nada disso é superior, ou tem força para eliminar a minha primeira viagem em busca de Moby Dick. Regresso pois a casa. Reencontro o que tem importância. Já o tinha afinal compreendido desde a origem. Desde sempre!

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