sexta-feira, 23 de agosto de 2013
JOSEPH CONRAD: ACASO
Em Conrad aceito tudo, como sucede com certos e raros amigos: o que nos oferecem é tanto, tão bom e a tal ponto essencial, que as suas obsessões, mesmo as que mais nos perturbam, as suas falhas ou incompetências particulares, se tornam de facto irrelevantes. No Grande Conrad, suporto os marinheiros tisnados e a persistência do mar, os diálogos demasiado pomposos, preenchidos com termos complexos e filosofias subtis de mais para que realmente os imaginemos na boca de lobos do mar, diante de um copo, numa taberna. Mais: suporto as extensas narrações impostas pela voz de um único homem, o narrador, em geral um marinheiro, que conta certa história a algum comparsa, numa fala perfeita, literária - irrealista.
O que nos oferece, em contrapartida? Podemos principiar pela categoria «descrições». Não conheço igual. Como se, para nos
apresentar uma rua, um bar, uma casa, um rosto, um vestuário, fosse sempre possível, mais do que somar características, achar a frase inesperadamente justa, que nos deleita e põe em face de uma essência.
Lembro-me da altura em que uma amiga ansiava por me fazer aceitar Isabel Allende. Bem. Eu gosto de Isabel Allende, e considero A Casa dos Espíritos um romance estimável. O primeiro problema é que não estávamos a falar de A Casa dos Espíritos, e sim de um outro seu livro, menoríssimo; o segundo problema é que, ao tempo, andava eu lendo Conrad: Nostromo. Qualquer comparação parecia fatal para Isabel Allende. Em Nostromo encontrava tudo o que lhe faltava: a elegância do estilo, a sublimidade de ideias que se exprimem em fórmulas inesquecíveis, o sentido do paradoxo, o prazer da ironia, o detalhe nas descrições. Isto ao longo de uma história contada sem qualquer pressa, detendo-se no pormenor, no espaço, nos modos e nos caracteres das personagens. A escrita de Allende é democrática: uma sua pulsão tende para a banalidade. Mesmo no melhor, nunca será óptima, embora a considere frequentemente boa. A escrita de Joseph Conrad, porém, é aristocrática. Cultiva um gosto pelo raro e pelo exigente, que faz dela propriamente não-massificável.
Deixem-me ilustrar com dois exemplos de Acaso.
«O homem sentava-se a uma escrivaninha de madeira, com embutidos, que parecia uma peça rara de museu; a cadeira oval tinha um espaldar alto, de talha, e estofo de tapeçaria já desbotado; e o confronto destes objectos com o dispendioso charuto havano escuro, que ele incessantemente fazia passar do meio da boca para o canto esquerdo, davam-lhe uma aparência ordinária e desagradável.»
Ou então:
«Vestia de preto. Lembro-me que trazia uma gravata de cetim preto, larga, lisa, na qual se via um alfinete com um camafeu; o colarinho dele era pequeno e voltado. O cabelo descolorido e sedoso, ligeiramente encaracolado sobre as orelhas. Tinha as faces arredondadas, sem barba e, aparentemente, macias. Andava muito direito, mas com passo miudinho e as suas falas eram doces e em tom comedido.»
Acaso é um livro a que chego por mão de uma recomendação de minha prima, que começa, primeiramente, por discordar da simplicidade da tradução, para português, do título: "Chance" é "Acaso", sim,
mas também "Sorte", "Oportunidade". «Porventura», exagera já ela, «até "Destino".»
A prima põe-me ante um tema que me alicia: a história de uma órfã [descobrirei por que razão, na enigmática fórmula de uma das personagens, se trata de uma «órfã até certo ponto»...], educada por uma terrível preceptora e acolhida, aos dezasseis anos, por uma família boçal, bondosa e irritante. Pergunto-lhe: «O quê!? Um romance de Conrad sem mar nem marinheiros!?» Responde-me: «Marinheiros não faltam. Mas é uma obra de que gosto imenso.»
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2 comentários:
Caro Pacheco, pode ser que eu esteja enganado. Mas creio que em 'O Agente Secreto', de Conrad, faltem marinheiros.
Tem toda a razão. Em O Agente Secreto - que é excelente - faltam marinheiros...
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