domingo, 14 de julho de 2013
ROBERT BRASILLACH: COMO O TEMPO PASSA
Meu avô citava-me uma frase temível, com que Brasillach se elevava sobre a mediocridade virtuosa dos seus perseguidores. Guardei-a comigo durante séculos. Um dia, tentei recordá-la. Tinha-a esquecido. Irrevogavelmente.
Certa vez, passei por um alfarrabista e topei, em francês, com um livro desse autor que meu avô tanto admirava. Comme le Temps Passe. Trouxe-o comigo. Li-o, com a lentidão e o esforço de quem ainda não estava preparado. Pela segunda vez, esqueci Brasillach.
Foi a Teresa que mo sugeriu agora, numa tradução portuguesa que nem sabia existir, da Ulisseia.
Robert Brasillach [se queremos começar por um ponto incontornável, que Teresa também refere] foi fuzilado aos 36 anos, devido à sua colaboração com as forças nazis. Muitos intelectuais franceses, naquela intolerância que a França herdou directamente da sua revolução, aquela estreiteza que não admite mais do que um único ângulo, proscreveram Brasillach, sublinhando os filmes ou as fotos em que ele aparece entre oficiais nazis, ou aqueles em que o vemos no uniforme da traição. Que merda que este homem, como Céline, outro fulgurante fantasma do lado errado, haja sido também um escritor de génio.
Mas Céline foi sempre um provocador: o seu anti-semitismo ou a sua veia fascizante estão presentes na obra extraordinária que nos legou, sobretudo em Morte a Crédito, sob a forma de desprezo pelos pequeno-burgueses ou de sarcasmo. Em Céline há uma bem-vinda truculência, mas nenhuma gentileza. [Não é rigorosamente verdade: a sua "petite musique" tem inesperados surtos de delicadeza e amor.] O que Brasillach, pelo contrário, revela na sua obra é uma personalidade gentil e melancólica. Nenhuma agressividade, nenhuma truculência.
Como o Tempo Passa é um dos mais interessantes romances que li, não nos últimos meses, mas desde sempre.
Primeira questão: com que idade o terá escrito, se foi morto aos 36 anos?
Retomemos, como segunda questão, a que já formuláramos: como pode este homem, não só que escreve com tamanho talento, mas mostrando este espírito de observação e compreensão, esta sensibilidade, esta captação dos sentimentos humanos, esta proximidade do mais refinado e do mais subtil do espírito, esta cultura, haver sido um simpatizante do nazismo? A minha resposta apontaria para a tese do equívoco. Tem de ter havido um equívoco na posição política de Brasillach, um engano em relação ao autêntico alcance e prática do nacional-socialismo, um desconhecimento dos campos de concentração, do assassinato mecanizado em larga escala. Desengano-me. A menor pesquisa exige que me desengane: na forma da sua colaboração em jornais, nas denúncias dos patriotas franceses, que não hesitou em fazer, sobretudo no anti-semitismo que assumiu e ostentou, está claro que a tese do equívoco é uma tese ingénua.
O que não se explica é, então, o romance maravilhoso acerca da transição do século XIX para o século XX, como um movimento prodigioso, exuberante e demasiado veloz; tendo vivido a sua infância feliz numa ilha descrita como o éden, René e Florence criam uma ligação aparentemente indestrutível. O início não é sempre o éden, a felicidade e o que se julga indestrutível? Bravios, livres, magníficos, desconhecendo qualquer disciplina severa ou currículos rígidos, não precisando, para um enquadramento mínimo, senão da tia Esperança e de um bizarro professor, Matricante, os dois meninos têm tudo quanto lhes falta. Marca-os a imagem de um tutor que nunca realmente viram, que designam respeitosamente por A Figura, e de que temem o retrato que se encontra no escritório.
Quando arrancado ao éden para ir estudar em Paris, René será o jovem um pouco perdido, uma espécie de "homem sem qualidades", que nenhum traço final define. Como o próprio tempo, ele é a substância mutável, curiosa, flexível, com saudades e recordações que o visitam, mas o não enraízam. Conhecerá por fim A Figura - um prestidigitador com pouca fé no futuro da sua arte - e há-de reencontrar, ao longo dos anos seguintes, o seu mestre Matricante. Este será sobretudo o instrumento do tempo, que se apaixona pelas grandes invenções quando ninguém ainda crê nelas: o cinema, no início; mais tarde o automóvel, na sua expansão. René segui-lo-á, sem convicção, mas curioso, em todas essas incursões mágicas e maravilhadas.
A simplicidade do reencontro com Florence, nessa Paris que tão pouco se parece com o mundo fechado da sua infância, e o narrador nos descreve nos múltiplos pormenores que reconstituem a Cidade-Luz num tempo de luz, faz dele um destino. Mas tudo isto sem excesso estilístico, sem uma voz narrativa que se imponha grandiloquentemente. Há, pelo contrário, um estilo perfeito, feito de frases tão belas, mas ao mesmo tempo tão naturais, que chegam a passar despercebidas; é em geral a uma segunda leitura que lhes captamos o segredo, e nos surpreendemos, esquecidos por uns instantes de respirar. Como se tivéssemos sido atingidos.
Mas é uma simplicidade enganadora. Em determinadas situações, compreendemos o encadeamento surdamente exigido para que o leitor duvide do que compreendeu. Quando René, entretanto casado com Florence, de quem teve um filho, se afasta dela, por que razão se afasta? Por causa de uma conversa sobre o sentido da guerra? Ou porque assistiu ao espectáculo de um beijo trocado entre Florence e um jovem militar estouvado? E viu, realmente, o espectáculo? A que assistiu efectivamente René? Ou a que foge? Florence não o sabe. Mas o leitor também não está certo.
Nesta reconstituição do tempo como um contínuo movimento de encontros, perdas, por vezes de reencontros (mas não de tudo o que quereríamos reencontrar, e nem sequer necessariamente do que nos parecia então essencial), libertam-se episódios paralelos, histórias minúsculas, de personagens secundárias que são outros tantos braços do tempo. Como a de Patrice e do seu cego. Ou como a de sua mãe. São apontamentos comoventes, terríveis, luminosos no modo como se destacam do denso conjunto de sombras que as sufoca. Ou a do pequeno espanhol, tão prematuramente morto; e a propósito da noite passada, em Toledo, por René e Florence, atentemos nas quinze páginas [quinze!] em que nos é contado o modo como os dois jovens se entregam um ao outro, num misto de pormenorizada descrição dos gestos e das expectativas, na encantadora dança dos dois corpos, e de cuidadosas elipses, ou sugestões, com que se evita uma exposição grosseira. São quinze páginas inesquecíveis, que todos os escritores portugueses deveriam ser obrigados a ler, se é verdade que a literatura portuguesa é conhecida como generalizadamente pobrezita na descrição do acto sexual.
Robert Brasillach permanece um enigma.
Como o Tempo Passa, em todo o caso, é uma obra literária maior. Se não resgata o homem, resgata-se a si própria.
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6 comentários:
Mais uma crítica assombrosa, José. Assombrosa e cheia de sensibilidade, tão bem aponta momentos marcantes (e nada dizendo daquele maravilhoso final, que tanto me comove sempre, o livro merece ser descoberto). A escrita é de uma pureza rara. Aproveito para lhe dizer o quanto gosto da sua adjectivação,e como achei feliz e iluminado o adjectivo "bravios" para definir René e Florence quando crianças - aliás toda a parte da infância é quase poesia em prosa, um pouco como Jorge Amado, a comparação ocorre-me muitas vezes.
O episódio da noite de Toledo, de uma beleza rara, faz-me sempre lembrar o da primeira noite de Tereza Batista com Daniel, e vice-versa. Escritas e sentires tão diferentes e tamanha beleza. A propósito disso, fui há dias investigar a origem da expressão castelhana "una noche toledana" (noite passada em claro), que obviamente não podia ser literária, e muito menos de um autor estrangeiro pouco conhecido.
Quanto às suas duas questões:
1. Brasillach tinha 28 anos quando o escreveu (é de 1937), como aliás certamente já terá verificado.
2. Há muito que separei o homem do livro. O livro para mim é um mundo, o homem permanece um enigma que me inspira alguma repugnância, daí a necessidade de o dissociar da obra de ficção (há quatro anos fui à Polónia apenas para ir a Auschwitz, autêntica peregrinação, julgo que isto diz tudo).
Céline também? :)
Ainda sobre a contradição de o homem que escreve este livro ter acabado diante de um pelotão de fuzilamento, ele escreveu para o Action Française julgo que na primeira metade dos anos trinta, e na época não tinha qualquer simpatia pelo nazismo, tendo escrito sobre Mein Kampf, em 1935, que «C'est très réellement le chef-d'œuvre du crétinisme excité... Cette lecture m'a affligé ».
Muito obrigado pelos seus comentários e pela sua leitura dedicada da leitura que faço; não quis ser de novo intruso no seu blogue, a chamá-la até ao meu. Já sabia que viria. Obrigado pela descoberta - "Lunes de Fiel" - e pela redescoberta que me proporcionou. Estou muito atento aos seus interesses literários. Salto logo à procura.
Céline também, é claro. "Viagem ao Fim da Noite" é uma das minhas obras de eleição.
José, fiquei, em parte devido a sua bela análise, muito interessado na obra de Brassilach; entretanto é muito difícil encontrar. Quais são as obras dele que estão disponíveis em português ou ainda inglês? Se pudesse me indicar um site para comprá-la, agradeceria muito.
Obrigado, e parabéns pelo ótimo trabalho.
Muito obrigado pelas suas palavras. Infelizmente, neste momento não estou em condições de ajudá-lo - o que eu li veio, quase com teias-de-aranha, do depósito de uma biblioteca; mas vou tentar investigar; dir-lhe-ei qualquer coisa...
José, já andei por si à procura de downloads grátis de Brasillach para o anónimo, não encontrei nada. E, sinceramente, apesar de ser uma língua que muito amo, repugna-me a ideia de o ler em inglês. No original ou na tão bela tradução portuguesa da Ulisseia (tenho a edição brochada que ilustra esta entrada e a encadernada mais antiga, tal como tenho a edição encadernada da Ulisseia de Viagem ao Fim da Noite e de As Chaves do Reino - A. J. Cronin, se não leu corra atrás dele AGORA!), em inglês não consigo mesmo.
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