sexta-feira, 12 de julho de 2013
GEORGES PEREC: A VIDA, MODO DE USAR
Georges Perec é um escritor sobejamente conhecido. Por mim, só o era de ouvido. Mas acontece que uma das suas primeiras obras, O Condottiere, recusada por diversas editoras, e sobretudo por essa recusadora-mor que é a Gallimard, veio a ser recentemente redescoberta, numa mala - aliás como Perec tinha previsto, em carta onde se lamentava das sucessivas recusas -, e publicada agora sob os justos holofotes e ao som de trombetas.
Imagino-me no lugar de um conselheiro editorial da Gallimard. Vejo-me olhando, com alguma relutância, para o original de um escritor desconhecido, depois principiando a folheá-lo e, por fim, embrenhando-me no texto. Pergunto-me, honestamente: haveria a menor possibilidade de deixar escapar tudo o que se diz [mas agora é fácil dizê-lo] que germinava já neste seu início? deixar-me-ia enganar, empurrando para longe as folhas, com algum enfado, e comentando para os meus botões: «Este tipo é um fala-barato», ou «Há aqui ideias interessantes, mas o sujeito perde-se em palavreado: tal como está, parece-me impublicável»? Ou intuiria a luz, «Espera aí, espera aí», uma leve incerteza progressivamente consumida pelo reconhecimento do génio...?
Neste livro é imperdível, antes de mais, o prefácio [da autoria de um magnífico Claude Burgelin], que historia, enquadra, liga, aprofunda, compreende, em síntese: faz luz. Falarei, porém, do romance em si em outra altura. Ou talvez não. Em todo o caso, ele foi a porta correcta para a descoberta de Perec, nomeadamente de um seu outro livro: A Vida, Modo de Usar, que li a seguir.
Todo o experimentalismo é exigente. E, portanto, cansativo. Sem o respaldo daquilo a que já nos habituámos, o novo precisa de um corpo-a-corpo. Há-de haver uma razão para ser tão difícil lermos Ulisses. Não que não seja absolutamente indispensável: de se experimentar, de se inovar, nascem as novas formas, um horizonte mais rico de possibilidades, de que entretanto aprenderemos a apropriar-nos também. Mas os nossos sentimentos, a sensibilidade, estão formados, ou até treinados, para reagir ao que lhes toca de um dado modo.
Por outro lado, se as experimentações permitem uma evolução técnica da arte, nem por isso advirá delas qualquer progresso qualitativo, ou da essência, ou da grandeza, ou da genialidade. Não se "evoluiu" para além de Homero, Dante, Shakespeare ou Proust. Nem acredito que a força intemporal da obra destes pudesse ter melhorado pelo facto de haverem conhecido outros recursos, outras figuras, outros meios.
Isto dito, A Vida, Modo de Usar é uma obra que consumimos em pequenas doses de cada vez. E, de cada vez, deixa-nos fascinados. Mas é um fascínio que precisa de se recolher, se desligar momentaneamente. Há um excesso que não é da ordem da urgência nem da impaciência, mas da concentração. Há uma forma que pede o seu tempo de digestão.
Vejamos: entra-se num prédio, visto rigorosamente como um puzzle, e vai-se descrevendo cada um dos apartamentos como se descreveriam as peças do mencionado puzzle. O que é particularmente bem conseguido é que, em cada uma dessas apresentações há como que uma suspensão do tempo. Estamos num dos quartos das criadas, por exemplo, e é como se acabássemos de chegar, surpreendendo a cama, os móveis, mas também as pessoas que lá se encontravam nesse preciso instante, um homem que fuma e lê o jornal, ou uma mulher que se penteia. Essa quase-cristalização, que captura o momento, com pessoas ocupadas em tarefas que fazem parte desse tempo subtraído ao tempo, funciona como uma ponte para se irem introduzindo explicações, um passado, uma biografia, uma história, seja a propósito de uma estante, um pente, uma caixa de charutos ou um jornal tombado no chão. Bruscamente, essa imersão na história, na biografia, parece acelerar. A narrativa ilumina-se, como quando se conta o episódio da jovem ama que deixara afogar o bebé no banho, e será perseguida pelo pai da criança, que a assassinará muitos anos mais tarde. Liga-se, pois, o tempo suspenso, enclausurado na sua lógica própria, a um tempo e a uma lógica exteriores, que o ultrapassam e acomodam. Das duas uma. Ou perguntamos «Mas para que diabo serve esta minúcia?», ou nos deixamos seduzir pela sua riqueza um pouco vã, mas cativante.
Um puzzle é uma estrutura que devemos construir. Eventualmente, uma vez composta, mostra uma figura e, então, oferece um sentido. Porém, em Perec, o sentido vem sempre em diferido. O espectáculo principal é o da sua construção. É o de nos fixarmos atentamente em cada peça, e esgotá-la, antes de a ajustarmos ao todo.
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