quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
JAROSLAV HASEK: O VALENTE SOLDADO CHVEIK
Sempre vi o Império Austro-Húngaro como uma das mais ricas expressões civilizacionais da humanidade. Uma obra-prima de talento e bom-gosto. É bem verdade que se, e em praticamente todas as artes, olharmos para algumas das personalidades e obras produzidas no seio desta monarquia, não podemos deixar de ficar impressionados. Pela qualidade e pela quantidade.
Paradoxalmente, esses mesmos artistas eram em geral muito críticos, se não hostis, em relação ao império que, visto por dentro, não passaria porventura - afinal - de uma manta de retalhos, unindo pela força e pela burocracia povos que se não reconheciam nessa unidade; com um regime jurídico pormenorizado e caricato; advogados e juízes e polícias que velavam ridiculamente pelo cumprimento extremo de alíneas meramente formais, e espiões absurdos, que vigiavam cada cidadão, controlando todas as palavras e lendo, nas mais inocentes, perigosas armadilhas contra o Estado.
Hasek escreveu, a partir desta matéria-prima, um romance delirante.
A sua personagem central, o Chveik do título, é uma peça indigesta para o sistema.
Não tem outra força que não a da sua ironia.
Aliás, como ele mantém do princípio ao fim uma absoluta opacidade, nunca sabemos muito bem que intenção o move, ou sequer o que pensa: ao contrário daqueles romances em que se procura exprimir o fluxo contínuo da interioridade, a interioridade da personagem permanece-nos oculta. Chveik vai-nos sendo exposto unicamente através das suas palavras ou de reacções bizarras; o equívoco começa, pois, por se gerar: estamos perante um pateta cuja inocência atinge os píncaros, um pobre de espírito, ou perante um revoltado astucioso, na sua indiferença estóica em face dos males, das contrariedades, das punições que sofre? Mas essa ambiguidade contém, em si mesma, um eficaz efeito de surpresa e de comicidade, tanto mais que o narrador a cultiva, exprimindo-se sempre como se acreditasse na ingenuidade e na bravura de Chveik, e como se a possibilidade de este estar simplesmente a troçar de todos os outros nunca sequer lhe ocorresse.
Não que Chveik seja um filósofo. Não tira lições da vida, nunca se examina a si próprio, nem reflecte acerca do mundo. Também não é um político, embora a sua atitude remeta para uma certa forma de resistência, um pouco à maneira de Bartleby. «I would prefer not to.» Ele não participa propriamente do movimento do mundo. Deixa-se arrastar. A sua astúcia permite-lhe quando muito tirar partido das situações, não provocá-las. Muitas vezes, ou sempre, o que lhe suceda de melhor não tinha sido premeditado.
Chveik não combate, limita-se a abrir os braços e a apreciar tudo quanto ganha. A sua heroicidade não foi desejada, nem construída, nem verdadeiramente corresponde a um desígnio. A imagem de bravura que irradia não é mais do que a boa sorte dos boémios e das crianças, a mão que deus põe por baixo dos que não querem saber senão de estar de bem com uma vida que quer estar de mal.
Mas capítulos como o de Chveik sendo escoltado por dois soldados, um «trinca-espinhas» e um «pote», ou o da missa campal, em que ele próprio assiste o oficiante, um extraordinário capelão bêbedo e sem fé, de quem entretanto se tornara impedido, são impagáveis e imperdíveis.
Escrever um texto humorístico é muito difícil. A situação cómica carece de todos os sentidos; um comediante faz rir não apenas pelo conteúdo do seu discurso, mas graças à voz, à expressão, ao gesto, à oportunidade e a um certo modo de o dizer. Ora há, na leitura, um distanciamento que abstrai de tudo o que pudéssemos testemunhar com os nossos sentidos. Naturalmente, existem técnicas de escrita de humor - o inesperado necessariamente, o contraste, a inversão. Ainda assim, as técnicas não produzem de imediato o cómico. Por isso mesmo, porque me parece tão difícil, dou particular importância aos textos que me fazem rir. Deste ponto de vista, O Valente Soldado Chveik é um romance de um humor corrosivo e certeiro, absolutamente extraordinário.
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