Não sei muito bem por que razão o tradutor e prefaciador de Almas Mortas, na belíssima edição da Estampa, sentiria necessidade de tratar Gogol como um escritor menor na literatura russa. Nem sei porque lhe há-de parecer que Almas Mortas é, unicamente, o nascer do sol, sem o qual, concede-se, o sol não poderia atingir o zénite [Tolstoi, Dostoievski].
Mais do que um dos iniciadores do realismo [com as suas descrições de personagens cujas interacções, entre si e com o mundo histórico e cultural a que pertencem, reconstitui, com tanta força, aquela Rússia do século XIX, feudal, burocrática, militar e religiosa], o que me interessa em Gogol é a sua veia satírica, um humor ferino, um talento para a caricatura. Se faz sentido defini-la assim, trata-se de uma "caricatura realista": porque imagino uma Rússia em que aquelas personagens grotescas fossem perfeitamente possíveis, com as suas "grandes pencas", a sua velhice assexuada, uma avareza extrema ou uma generosidade tonta, as suas cerimónias, os seus intróitos, os seus salamaleques, os infindáveis percursos da burocracia e a sempiterna marca militar, em pinturas de guerra, ou de grandes generais russos, decorando as paredes.
É um poema (como o denomina o próprio Gogol) acerca de um homem que compra, a proprietários vizinhos, "Almas Mortas": "Almas" sendo o nome por que eram designados os servos pertencentes a cada propriedade; e os servos falecidos, isto é, as "Almas Mortas" [ainda sujeitas porém a um determinado imposto] sendo aquelas que, por alguma secreto móbil, interessam ao comprador em causa. É estranho não se perceber como este texto prefigura, brilhantemente, algumas das incursões contemporâneas por uma certa realidade cómica e sinistra, desde O Processo ou Berlin Alexanderplätz até ao surpreendente Viagem à Índia.
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