domingo, 6 de maio de 2012

ANTÓNIO BRITO: SAGAL

Infinitas razões podem justificar o interesse que temos na leitura de um certo livro.
Às vezes, nem escolhemos as razões. O livro escolhe-nos e, à medida que o vamos lendo, as razões vão-se-nos apresentando.

Não seria capaz, pois, de estabelecer, antecipadamente, dois ou três motivos únicos que tivessem de presidir à minha selecção; os romances policiais procuram-me por isto, os de ficção científica por aquilo, os fantásticos, os de terror, as tragédias, as comédias, as tragicomédias - por não sei quê. As biografias, as auto-biografias, os diários, por outras coisas. E, no meio das minhas tentativas, só tenho memória de nunca ter conseguido ler um romance até ao fim - Ullisses, de James Joyce.

Aprecio literatura de guerra? A resposta certa tem de ser: à primeira vista, não; não existe uma tentação, nem sequer uma motivação. Não me "procuram"...

E, no entanto, fui levado a ler, recentemente, dois interessantes romances sobre a guerra colonial. Até ao Fim,  do meu amigo António Vasconcelos [e de que eu próprio fui, na Biblioteca da minha escola, o apresentador]; não vale a pena por enquanto adiantar muito mais a propósito dessa história sobre um grupo de fuzileiros, lançado no mato com a missão de resgatar prisioneiros a uma coluna de "inimigos"; em plena selva, sem contactos com o exterior, apercebem-se, por vagas e raras comunicações via rádio, que alguma coisa aconteceu em Portugal. Uma revolução, provavelmente, mas com que contornos? De esquerda? De direita? Serão os "inimigos" ainda inimigos?

Leio, agora, Sagal.
Por que me interessou inicialmente Sagal? Porque topei uma referência convincente: a criança abandonada numa caixa de Margarina Vaqueiro, diante de um bordel, e que fora educada pelo grupo de prostitutas; a infância, a adolescência difícil, na Casa Pia, e sempre com ligações a um certo bas-fond, a perseguição e a fuga em frente, para o exército. É uma história de acção: "Sagal" é, ele próprio,  uma espécie de herói e simultaneamente de anti-herói, um homem de acção que aluga a sua perícia e o seu potencial mortífero a quem pague mais. Segue-se, num certo sentido, como se veria um filme de Sylvester Stallone. Somos espicaçados pela força da história, mesmo que depois nos pareça que a devemos criticar, intelectual, cultural ou politicamente. Não estou hoje a fazer uma declaração de amor pelo cinema-Stallone; estou simplesmente a dizer que, nos filmes que em geral vejo, e na razão porque às vezes me apetece ver certos filmes, há estranhas razões que a razão desconhece, há uma superficialidade imatura que precisa de se consolar com tiros e explosões...

Sagal dá-me isso, de certa forma. Mas também um pouco mais: o quê? É duvidoso; possivelmente, uma certa dimensão histórica, que remete para o passado colonial, a memória do exército português em África, o testemunho de um certo tempo e de uma ideia de civilização. Leio uma história bem construída, que recupera um passado ainda por resolver, tal como muitas das histórias de acção norte-americanas procuram recuperar o tempo e o espaço da guerra do Vietname. Na sua ambição, é um romance que nos questiona a nós próprios. Aquele racismo e aquele reaccionarismo [aliás, absolutamente primário: veja-se a descrição implacável das personagens de uma esquerda "folclórica", oportunistas, sem higiene e preguiçosas; veja-se a da Lisboa de 77, entre panfletos e sujidade, comissões de trabalhadores, conspirações e greves...], aquele racismo e aquele reaccionarismo serão os que informam a visão do autor, ou são as referências "naturais" simplesmente do narrador, isto é, de uma personagem que representa a visão que seria, necessariamente, a de um homem daquele tempo, naquele meio?

Mas o romance é, porventura, ainda um pouco mais ambicioso do que isto, e oiço, até, falar dele como de um exemplo de literatura exigente e profunda. Apontam Sagal como texto um literário em sentido forte. «Muito bem escrito», dizia-se. Discordo. Pode haver certa graça nessa voz que cruza o português literário e a expressão coloquial, quase oral, de um narrador soldado: os palavrões, as frases de macho, as interjeições básicas. Mas não me basta: algo, nesse cruzamento, está manchado por uma insuficiência estilística, uma hesitação entre o que é literatura e o que é um modo de falar de que o autor não se libertou ao entrar no domínio na escrita. Demasiadas frases feitas e lugares-comuns, que nem sempre parecem deliberados; estranho que a propósito de um outro livro do autor, Lídia Jorge usasse palavras como «um testemunho cheio de força e muitíssimo bem escrito»; em todo o caso, procurados ou não, deixam-nos com o desconforto de estarmos ao que nos soa como uma habilidade menor, uma escrita-quase...

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