terça-feira, 6 de dezembro de 2011

HAROLD BLOOM: GÉNIO


Confesso que sou sensível a teorias que provocam. Se acontece a "provocação" ter substância, isto é, sobreviver a um primeiro sobressalto, então, ainda que discordemos da teoria, ter-nos-emos deslocado: há um movimento da nossa estrutura de referências que, se não conduz necessariamente a uma mudança de paradigma, também se não faz sem efeitos, mesmo que mínimos e subliminares.


Um exemplo: lia, com esse tipo de espanto, um crítico literário espanhol afirmar que Kafka era «um mau romancista». Acrescenta que, em O Processo, a primeira frase constitui um erro fatal. Abre-se a cortina com um período excessivamente revelador, porque conteria já todo o desenvolvimento e o fim da história. Discordo do juízo de valor, mas não posso deixar de concordar que a abertura de O Processo, de resto um livro extraordinário, é, a esta luz, uma abertura infeliz.


Harold Bloom é um destes pensadores.
Se abstrairmos, nas suas análises subtis, de algum elemento de arbitrariedade e de algum elemento de busca de efeito a todo o preço, o que resta é, ainda assim, uma visão competente e sagaz, muito estimulante, de uma cultura enciclopédica, conservadora e todavia original, e sempre provocadora.


Estou com um livro seu, Génio, entre mãos.
Pessoalmente, dispensaria que ele o tivesse organizado à imagem do Talmude. Mas concedo que, se prescindimos de uma exposição histórica de certos autores, carecemos de um outro critério de arrumação. E, é certo, por artificial que seja o que obtemos, o Talmude fornece uma chave de organização tão boa como outra.

Por outro lado, existem aquelas convicções muito fortes, a que eu chamaria "manias", de Bloom. Insistir em que José Saramago é o mais talentoso de todos os autores contemporâneos parece-me pouco razoável. Mas muito bem. Admitamos que há, no mais racional dos críticos literários, um incontornável lugar para o "gosto", e que o gosto tem razões que a razão desconhece.

Resulta, de tudo isto, um livro maior mas desigual, e com debilidades [que mo fazem ler sentindo-me interpelado, agastado, comovido], erigido sobre a tese do génio, isto é, a ideia de que, mais do que à cultura, ao tempo, a uma técnica que se aprenda ou às influências, o que verdadeiramente explica a grandeza de algumas obras literárias é, paradoxalmente, algo da ordem do inexplicável: o génio do seu autor. O tempo, a cultura, a técnica ou as influências de Marlowe não eram diferentes das de Shakespeare - e, no entanto, Marlowe nunca seria Shakespeare. Nem Marlowe nem, segundo Bloom, nenhum outro alcançou, alcançaria ou alcançará uma realização literária tão múltipla e tão perfeita. (Dante teria sido quem mais se aproximou).

E sob o princípio do génio, dividindo os autores por diferentes tipos de génio, incluindo, na obra, os portugueses Luís de Camões, Eça de Queirós e José Saramago, Harold Bloom apresenta-nos os génios cujas obras, para ele, formam o cânone da literatura ocidental. Poderemos não nos render, mas saímos acrescentados da leitura.

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