Tenho, com a obra de Saramago, a relação complexa que muitos outros portugueses.
Reconheço a originalidade da sua escrita; a pertinência de reduzir toda a pontuação ao essencial, de modo a melhor conjugar uma variedade de vozes num mesmo período, abatendo fronteiras e limites, desprezando calcificações e departamentos, na busca de um texto múltiplo e polifónico. Sinto que esta linguagem devolve ao leitor uma cadência oral, fazendo cada um de nós ouvir no seu espírito um leitor íntimo que lhe segreda palavras audíveis, ouvidas dentro.
Daí a minha curiosidade pelo primeiro romance de Saramago: esse que escreveu quando era um jovem e ainda não descobrira o seu estilo (e a sua voz); o tal que foi recusado por uma editora que, tantos anos volvidos sobre um arrogante silêncio, se prontificava agora a publicá-lo. [Penso que a história tenha sido assim]. Comprei-o. Tenho estado a ler.
Já se adivinha a voz de Saramago? Diria que não. Os sinais não existem ainda ou são discretos. Nada anuncia a revolução por vir. E, contudo, um editor inteligente teria publicado o romance do jovem desconhecido? Sem dúvida: desde a ideia de ir transitando, de apartamento em apartamento, de andar em andar, pelos diferentes moradores de um mesmo prédio, até à forma como nos descreve as personagens e narra as situações, mais lírica e menos ironicamente do que a do último Saramago, tudo em Clarabóia é um assombro e uma delícia: no espírito de observação, na captação e compreensão dos sentimentos, na beleza da expressão, este livro não mostra somente o que Saramago ainda não ganhara; mostra também o que perdeu com o seu enquistamento num estilo que, por novas possibilidades que lhe oferecesse (e lhe ofereceu, e nos ofereceu), o dominou, lhe exigiu muito, lhe cortou outras possiblidades.
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