sábado, 1 de outubro de 2011
DOMINGOS MONTEIRO: O CAMINHO PARA LÁ
A escrita de Domingos Monteiro, o seu estilo, tem, de facto, um elemento que a torna irresistível. Começamos a ler e damo-nos conta de que não há distância entre nós e o sentido do texto, como se o sentido fosse a nossa própria pele, os nossos próprios órgãos. Chamemos, a esse elemento do seu estilo, e à falta de melhor palavra, "limpidez". Ou "claridade": qualquer coisa que lembra Sophia - uma ausência de esforço, de ornamento despropositado; como se se tratasse de procurar sempre, e quase sempre alcançar, a coincidência entre o sentido e a expressão, entre o conteúdo e a forma; as palavras precisas, as frases a que não acrescentaríamos nem suprimiríamos coisa alguma. E o efeito estético é o de uma simplicidade que nos purifica.
O amigo que me emprestou este livro dizia-me, completamente rendido: «Domingos Monteiro, do meu ponto de vista, é o melhor escritor português do século XX». Não sei - não diria isso. Lembro-me de Sophia, que ainda agora mencionei, Jorge de Sena ou David Mourão-Ferreira (ou Torga ou Saramago, entre outros que injustamente esqueço - e alguns que não refiro porque não gosto) e não consigo comprometer-me com tamanha afirmação. Mas compreendo esse entusiasmo. E é evidente que, porque Domingos Monteiro é um autor quase desconhecido, ainda mais apetece engrandecê-lo, sob a forma de um paradoxo reparador, como se disséssemos: «O melhor escritor português do século XX é um escritor que nem os portugueses praticamente conhecem...»
O Caminho Para Lá é um romance de uma actualidade que impressiona. Lemos uma história que, como todas as que merecem ser lidas, saltou para fora dos locais e do tempo que descreve, para nos oferecer sentimentos próximos e autênticos. O "caminho para lá" é o caminho buscado por uma criança para se reencontrar com a mãe que morreu. E todas aquelas terríveis personagens que realizam o seu teatro em torno dessa criança (em face da incompreensível morte) são inesquecíveis na sua humanidade obtusa, na sua piedade sádica, na sua pequenez sórdida ou na sua inesperada grandeza. Desde o pai, Luís, que não aceita o filho porque o culpa injustamente pela morte da mãe, até ao tio Carlos, marginal e "incorrecto", sempre em conflito com a própria irmã, a Çãozinha, piedosa, de uma virtude mesquinha, passando pelo empregado Falinhas, para quem toda a natureza se concerta numa fraternidade essencial e a morte é uma ilusão (e que é, aliás, para mim, a personagem menos interessante e menos profunda) ou pelas carpideiras, no seu coro trágico, todas estas pessoas perpassam diante dos nossos olhos, fornecendo um assustador consolo, mas desejando, no fundo, vingança.
«As mulheres fixavam a porta, de vez em quando, para ver chegar o pequeno. Sabiam que o pai não o quisera ver, mas não ignoravam que a mãe não podia ser levada para a cova sem que o filho se despedisse dela. Por nada deste mundo arredariam pé dali. Dentro delas agitavam-se os sentimentos mais desencontrados: pena, e uma espécie de rancor satisfeito, um rancor que vinha do fundo do tempo e se transmitia de pais a filhos. Sentiam-se como que vingadas de uma humilhação milenária. A morte, a morte compensadora e invencível, estendia sobre todos a sua sombra igualitária. Aquela gente bem comida, bem tratada, caridosa nas horas vagas, mas sempre desdenhosa, também morria como os mais. A morte não poupava ninguém. E ela ali estava para castigar e corrigir as injustiças do mundo...»
É um romance delicado, frágil, como a respiração de uma criança assustada. Há uma dor que o percorre, um espanto informulado, informulável, perante uma natureza que se compõe, aparentemente, como uma fraternidade de seres (a crermos na visão daquela espécie de Alberto Caeiro humilde, que é o Falinhas), mas esconde o mistério de uma injustiça fundamental. É um texto muito belo, estranhamente belo: reflecte a beleza que possa haver na inocência descobrindo a crueldade; aí se debatem a contínua saudade e uma ténue esperança.
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