terça-feira, 15 de junho de 2010

NABOKOV: O LIVRO PROIBIDO


«Florinha Afável» escreveu no seu blogue, há longos meses, acerca de um «clássico» que acabara de ler. Lolita, de Nabokov. Pensei comentar - não sei, aliás, se cheguei a fazê-lo; pensei aproveitar para escrever o meu próprio post sobre Lolita. Não era o momento. Não o fiz.

Nabokov escreve muito bem - e tanto nos seus contos mais curtos como nas suas novelas e nos romances demorados, o texto nabokoviano constitui sempre uma fruição para o espírito, ora na contenção com que, em frases breves, acerta no núcleo de uma determinada emoção; ora no espraiar-se paciente, rebuscado, gongórico, de uma expressão que vive das mais conseguidas figuras de estilo. Mas, claro, seria pouco corajoso da minha parte que, para comentar um dos livros da minha vida, me refugiasse - e precisamente por se tratar de Lolita - na perfeição estética da escrita.

A questão, se quiser enfrentá-la crua e friamente, é que Lolita (não há quem o não saiba) tem que ver com um pedófilo e a sua fixação por uma ninfeta: precisamente Lolita.

Há outras histórias acerca de monstros, é certo: tome-se, por exemplo, Hannibal Lector, em O Silêncio dos Inocentes. Não podemos deixar de sentir algum miserável fascínio pela personagem hedionda, pelo seu requinte, pela elevação a arte dos seus actos horrorosos. Mas, ainda assim: sabemos que, na tensão que o romance desenha, temos sempre uma pessoa certa com cujo ponto de vista nos possamos identificar, a personificação do Bem e, simultaneamente, da inocência. Em Lolita, não encontramos essa possibilidade. Estamos face a face com Humbert Humbert. Estamos face a face com o mal.

E, curiosamente, se não é tanto o fascínio que aqui nos move, é a piedade e a compreensão em relação à tortura obsessiva de um homem de meia idade perante uma paixão descontrolada e doentia por uma garota de doze anos. E, de facto, não poderíamos não falar, aqui, de «paixão»: uma paixão imoral e proibida, intolerável e repugnante, psicótica, mas também triste, amargurada, sofrida, dilacerante.

Será o momento de nos perguntarmos se, ideologicamente, Lolita pode ser visto como um branqueamento da pedofilia. Não pode. De forma nenhuma. Primeiramente, porque seria um erro crasso reduzir a mera "ideologia" o conteúdo de uma das mais complexas, intensas e contraditórias obras de arte, que se assume, toda ela, no risco e na coragem de tomar como protagonista e narrador (alguém, portanto, que nós, leitores, seguimos, perscrutamos e a cujo pensar temos acesso) uma figura limite, execrada pela moral da nossa civilização. Precisamente: é no limite, ou mesmo para além de todos os limites, que as obras de arte valem a pena. Não simpatizaremos com Humbert Humbert, não o toleramos, nem à sua astúcia, nem ao seu desejo lúbrico. Odiamo-lo; e odiamo-nos a nós mesmos por não o odiarmos sempre e por não o odiarmos linear e liquidamente. Mas é uma história trágica e tremenda, uma história de infelicidade, inesperadamente maravilhosa e febrilmente cruel.

No pior da humanidade - e é terrível, talvez, intuirmo-lo assim - nunca estamos perante o outro de nós, o inverso da nossa tranquilidade racional. Estamos, quando muito, numa insondável e obscura dimensão humana. Algures, próxima. Porque é inegável que o sofrimento, as ideias, os medos de Humbert Humbert nos são acessíveis: há, entre nós, algum tipo de comunicação - não se trata de o explicar, nunca se cuida de aqui "psicologizar" ou "psicanalizar" o malfeitor, nunca de o compreender. É, num certo sentido, ainda pior: mais do que revelar como, sob o mal, encontramos razões humanas, o que se revela é como toda a razão humana está contagiada pelo mal e com ele se mistura e confunde perversamente. O mal rararamente é inumano. Ou, sequer, inteiramente irracional.

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