Descobrir algo à luz de expectativas elevadas pode ser esmagador. Se me disserem, por exemplo, «Este é o melhor livro de sempre» (e, atenção, ninguém mo disse), põem-me perante uma ideia reguladora, aprisionam-me numa forma. Loriga muda, efectivamente, a nossa maneira de ler, de lidar com a linguagem e de ver o mundo, mas não devem prometer a mudança antes de começarmos a lê-lo, não devem garantir-nos antecipadamente a transformação, através dele, antes de termos principiado a transformar-nos por ele: do mesmo modo que se não aprende a nadar primeiro, para se entrar na água depois - aprende-se a nadar nadando.
Há almas criadoras que forjam unidades mais ou menos totalitárias, e outras que fazem do fragmento e da dispersão uma forma de arte. Ray Loriga, semelhantemente a Montaigne, com quem lhe encontro subtis afinidades, é uma destas últimas.
Em Loriga , a fragmentação tem que ver, primeiramente, com a observação de uma realidade que se apresenta, ela mesma, fragmentária, múltipla, volúvel, mutável, sem coluna vertebral nem razão de ser: a linguagem do autor exprime esse permanente espanto perante a inquietante multiplicidade. Mas, ao invés de conduzir toda a variedade a um Uno, a Deus, a uma narrativa, uma certeza, ensaia, em cada momento, as mais insensatas e imprevisíveis ligações. É uma forma de humor, sem dúvida. A estranheza das suas enumerações, por exemplo, em que vai coleccionando o que nada parece ter em comum, mostra como opera essa linguagem que tudo atrai sem verdadeiramente desenhar um fio.
Mas é certo que essa "perplexidade magnética", chamemos-lhe assim, cria uma forma absolutamente nova e originalíssima de interrogar a realidade. Porque o mal radical da "interrogação", é que se torne demasiado sábia - ou previsível, o que vai dar no mesmo. Sinto uma espécie de aversão imediata por aqueles alunos que me fazem perguntas preparadas, ensaiadas, estudadas, perguntas que não têm que ver com curiosidade (a curiosidade é sempre inocente), mas com exibição, "vejam como eu pergunto tão bem, reparem como a minha pergunta é inteligente»: em Ray Loriga, as perguntas são impossíveis, ilógicas; nunca vêm da superfície mas do recôndito, do secreto, dos intertícios, do outro lado do espelho.
E, portanto, sim: sem forçar, sem ter de chegar a uma conclusão que fora previamente imposta sob a forma de expectativas, mas porque eu, leitor, percebi, por fim, que me entregara a um texto que nunca se me entregou (porque se manteve seguro na sua personalidade e diferença, porque me desafiou e exigiu de mim, do princípio ao fim...), não posso senão concordar com Tiago Torres da Silva, que mo tinha recomendado. Heróis muda a maneira de um gajo olhar para as coisas. Irónico e pessimista, ingrato, estranho e inocente. Muda tudo.
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