Após a refeição, lauta, sem dúvida, e enquanto alguns dos presentes cercavam uma mesa de snooker, jogando com entusiasmo, fui-me aproximando, com um tímido copo de tinto na mão, da estante que me não saíra da visão periférica desde que ali tinha chegado.
Às tantas, vi uma sombra

Antes que tivesse tempo para responder, disse-me:
«Comprei este livro há muitos anos, influenciado por um debate televisivo em que um grupo de intelectuais o elogiava como sendo uma obra incontornável. Nunca li senão quatro, seis páginas, dez, vá. E era só o primeiro volume. São sete volumes! Perfeitamente ilegível. Horroroso!»
Fez uma pausa, e concluiu:
«Tenho a certeza de que nenhum daqueles grandes intelectuais foi capaz de ler esta pessegada...»
Não cheguei a falar, é claro.
Conto-o agora, por graça. Porque a verdade é que, sendo apenas meio intelectual, isto é, um intelectual sem o menor prestígio nem autoridade, li os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. E considero Proust, com toda a sinceridade, o meu autor maior, o que me enche as medidas, o que me encanta e arrasta pelos níveis variados de um romance de muitos tomos, complexo mas, de facto, completo.
Dizia o meu primo: «Lemos Proust, e tudo parece de uma simplicidade extrema. Não há prop

Tenderia a concordar. Talvez com excepções. Mas tenderia a concordar.
O texto de Proust reflecte e exprime um ponto aéreo da sua consciência, onde brotam e por onde perpassam ideias banais, daquelas que habitualmente não levamos a sério, se e quando é em nós próprios que afluem; e de que nos arrependemos, mais pela sua superficialidade do que por outra razão; ideias que, por tudo isto, não estamos habituados a formular e nunca nos lembraríamos de comunicar a outrem: pensamentos inacabados, mal pincelados, considerações flutuantes, voláteis, a que não damos importância cognitiva, entre a mera sensação e o vagamente intelectual, formam, pois, a quase impudica matéria de Proust: a verdade, porém, é que nos reconhecemos imediatamente neste strip-tease da consciência. Afinal, é produzindo pequenas e móveis ideias desse género, que também o nosso espírito constantemente preguiça, no seu impressionismo interior...
Por outro lado, as personagens são vivíssimas, realistas nas suas contradições e debilidades, mas encantadoras nessas mesmas contradições e debilidades - tão humanas. Assistimos a um percurso em que as vemos mudar ao longo do tempo e em que, simultaneamente, as vamos vendo e redescobrindo segundo muitos olhares, de diferentes pessoas.
Assim, Marcel, o narrador, descobre, por exemplo (suponho que o episódio é contado no último voluma de a Busca), num livro de um dos irmãos Goncourt...
Mas interrompamos desde já o que escrevíamos, para introduzir um parêntesis: esse livro, pretensamente da autoria de Goncourt, de que Proust transcreve mesmo um excerto (um excerto obviamente escrito pelo próprio Proust, à maneira de Goncourt, porque «tal» livro não existe, é uma peça de ficção) constitui um extraordinário pastiche, uma falsificação perfeita de um estilo, uma imitação admirável do espírito de um autor real...
... Mas dizia: nesse livro, Goncourt (pseudo-Goncourt) fala-nos - e trata-se de memórias - de um certo sujeito como sendo um génio; e no entanto, nós já conhecemos esse sujeito. Sob outras perspectivas, que nos tinham sido apresentadas antes, e ao longo da obra toda, fomo-lo identificando como um homem medíocre, sem grande rasgo nem imaginação. Temos, pois, de sobrepor estes dois retratos, compreendendo que, porventura, ambos são incompletos e nenhum traduz fielmente a realidade. E é absolutamente notável como Proust nos obriga a ir refazendo o que julgávamos saber, entregando-nos as personagens segundo as suas múltiplas faces e interpretações, e nunca definitivamente catalogadas.
Por outro lado, a forma como descreve minuciosamente o indescritível - um cheiro, um sabor, uma vaga impressão - torna a sua escrita uma imperdível aventura do espírito. Há um degustar das palavras que se harmonizam, sem comodismo, para descrever algo tão efémero como uma sensação.
A profundidade da obra de Proust revela-se numa das minhas personagens preferidas, que é Swann: homem elegante e sofisticado, convidado dos melhores salões (privando, por exemplo, com os Guermantes),

A obra de Marcel Proust merece ser lida e a sua leitura torna-se, a prazo, uma experiência inolvidável do leitor integral, em que nenhuma emoção ou gosto é marginalizado ou esquecido, mas acredito que não fixe imediatamente a si o principiante. Não m

Por mim, reconheço que tive muita sorte. Uma convergência feliz de ses levou a que Em Busca do Tempo Perdido esperasse, desde sempre, pela minha atenção. Se não fosse o meu avô, que se fazia acompanhar sempre de um Proust, se não fosse o meu tio, que tinha a obra, em francês, resumida a três volumes em papel-bíblia, se não fosse um extraordinário artigo de Borges, se não fosse a maravilhosa tradução de Pedro Tamen, se não fossem as discussões infindáveis com o meu primo, se não fosse um livro imperdível de Alain de Bottom sobre Proust, poderia nem ter vindo a conhecer o que, para mim, é o mais genial de todos os autores de toda a literatura.