sábado, 4 de junho de 2022

LEONARDO PADURA: COMO POEIRA AO VENTO

 O romance, é claro, foi mudando de vestuário, à medida que diferentes equilíbrios sociais dele exigiam, ao longo dos séculos, objectivos que já não coincidiam com os do seu início, e uma nova classe, chamemos-lhe assim, de intelectuais consolidados e respeitados, o usavava como um laboratório de experiências, com a linguagem, com a forma de narrar, com o tempo, o espaço, as vozes. 

Alguma coisa se ganhou: a consciência do seu papel, o conhecimento da sua história, sem o qual as inovações não seriam possíveis, uma plasticidade que abria portas e criava caminhos. E, como sempre, alguma coisa se perdeu: talvez um fôlego, a visão omnisciente de um narrador invisível, a qual, com todos os defeitos, permitia a estrutura que tudo ligava e, em última análise, que o leitor seguisse variados desenvolvimentos de personagens, histórica e psicologicamente, em tempos e em espaços não coincidentes. O auge desse maneira de contar, intensa e de largo espectro, foi alcançado pelos russos do século XIX. Teve, depois, um fulgor genial e quase incompreensível em Proust. E, com raras excepções (Musil, Mann, para referir duas, evidentes), saiu de cena.



Leonardo Padura, autor cubano, tornado conhecido por ser o criador do detective Mario Conde, numa série de policiais de um realismo tocante, no cenário de uma Havana imbuída de pobreza, amizade e alegria, é um dos escritores contemporâneos capazes de ressuscitar o romance complexo de que vos falava, acompanhando a história de uma época, da revolução, melhor, das revoluções, dos desequilíbrios e reequilíbrios dos anos 40,  50, 60, 70, em suma, do século XX e, neste caso concreto, da sua viragem para o XXI. Já assim fora em O Homem que Gostava de Cães, onde passa em revista o centro do século, a partir de Trotski e Mercador (portanto da Rússia soviética sob Staline e da Espanha na Guerra Civil, e da Europa, ou dos comunistas e, de algum modo, todos os outros, na forma como se definiam sempre relativamente ao comunismo e à URSS). Volta a sê-lo com o impressionante Como Poeira ao Vento.

Também a forma, escorreita, cumpre o modelo do grande romance burguês, no sentido estritamente histórico da palavra: nem uma grande ousadia no uso da linguagem, preferindo-se a eficácia contida para o contar límpido de uma história, nem sobressaltos na estrutura.

Neste romance monumental, em que nos movemos com dificuldade em suspender por um instante a leitura, somos apresentados a Adela, uma nova iorquina de ascendência cubana e argentina (pelo menos é o que ela pensa, trata-se do que lhe contaram), com uma relação mais difícil com a mãe do que com o pai, e que travara, entretanto, conhecimento com um recente refugiado de Cuba, um balsero.

Numa fotografia que Marcos lhe mostra, em que lhe sorri da infância cubana, com os pais e os amigos deles, Adela identifica a sua própria mãe, grávida. Que história secreta, que passado inconfessado, ou simplesmente por contar, encerra essa fotografia, e de que modo explicaria a frieza da mãe em aceitar a paixão e a vida em comum de Adela e Marcos?

A descoberta da fotografia e da questão, ou questões, a que ela obriga, são o mote para um regresso ao passado e à biografia daquele grupo, das suas relações fortes e tempestuosas, da sua situação relativamente ao regime cubano, as suas dúvidas, os seus receios, as experiências traumáticas, o exílio de quase todos eles. É, como dirá Padura em uma entrevista, a história de uma geração, a sua geração. 

A história complexa, tortuosa e torturada, política e cultural, de um país e de um grupo de pessoas que representam a encruzilhada entre a aceitação de uma revolução, que prometia um mundo melhor, e a consciência das perseguições e do controlo. 

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