domingo, 29 de julho de 2018

RUI CARDOSO MARTINS: LEVANTE-SE O RÉU



Em certa crónica de Lobo Antunes, aliás uma das suas mais irritantes na Visão, reproduzia ele um diálogo que teria mantido com José Cardoso Pires acerca de um terceiro escritor. Em registo de um elitismo e de uma autocomplacência insuportáveis, António Lobo Antunes e José Cardoso Pires definiam uma espécie de panteão reservado a raríssimos eleitos, um clube dos melhores de entre os melhores, a que pertenceriam os dois (Saramago não, certamente!), e um outro, que ambos reconheciam como sendo dos «seus». O referenciado era Rui Cardoso Martins, à época ainda não muito popular, mas que, nas suas crónicas sobre julgamentos, revelava desde as primeiras linhas o espírito de observação, o sentido de humor e a qualidade da escrita em que o país deveria começar a reparar.



A crónica judicial é, em si mesma, um mundo. E tem uma vasta e riquíssima tradição em Portugal. Lembro-me de um livro enorme, que existia nas estantes de minha casa, quando eu menino, sobre dramas judiciais. O livro desapareceu. Mas recordo-me das descrições de julgamentos em que os procuradores e os advogados de defesa se esmeravam numa retórica carregada de "witt". Era muito engraçado. Era muito bom.

O que Rui Cardoso Martins faz é precisamente isso. Cada crónica sua descreve uma sessão de tribunal. Não sei se será o mesmo por todo o mundo (nos EUA há muito disso, sim), ou se os criminosos portugueses têm qualquer coisa de particularmente patusco. Mas a verdade é que RCM capta a singularidade humorística em notas que me fizeram rir, sozinho, a bandeiras despregadas. Em alguns momentos, apercebemo-nos do fio trágico e da dor autêntica entre as linhas com que se cose a situação ou o comportamento ou o discurso caricatos. As vidas e as relações que acabam em tribunal não são fáceis, em Portugal. O cómico é, muitas vezes, o tragicómico. Ainda assim, da compilação, em livro, de diversos casos, cada um sintetizado em texto de nunca mais do que 3 páginas e 1/2, resulta uma crónica de costumes que vale como um surpreendente tratado de sociologia e de psicologia.     

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