sábado, 13 de maio de 2017

ANDRÉ GIDE: O IMORALISTA


Gide foi já mencionado por mim em anteriores comentários. Não podemos resumir nem a sua vida, nem a sua obra. Mas faço questão de apontar algumas referências que, justa ou injustamente, configuram a importância paradoxal, positiva e negativa, que teve, desde cedo, para mim.

Homossexual que, por essa razão, não intuiu o génio de À la Recherche du Temps Perdu, catalogado, por si (pelo menos inicialmente), como uma espécie de obra inimiga, cuja publicação desaconselhou, uma vez que, segundo ele, escrita por um homossexual envergonhado, apresentaria, da homossexualidade, apenas o lado sórdido e ridículo; cristão educado numa visão da secura e da inflexibilidade da regra, mas, como muitos protestantes, fascinado pela riqueza e pelo excesso próprios do cerimonial católico; entretanto, convertido por um tempo a um insensato misticismo, como forma de superar o "pecado da carne"; simpatizante do comunismo, quando acreditou aí descobrir a síntese da mais autêntica prática cristã com a lucidez do ateísmo; «antipatizante» do mesmo comunismo quando, mais tarde, visitou a URSS e percebeu, in loco, a clivagem entre a doutrina e a realidade; autor de uma escrita clássica, de que se serviu, contudo, para exprimir inovadoramente os dilemas emocionais que lhe interessavam; prémio Nobel em 1947.

Na sua relativa simplicidade e na sua brevidade, O Imoralista é uma novela em tom autobiográfico. A história de um homossexual que desposa uma mulher, com o fito de tranquilizar o próprio pai, moribundo, recorda-nos imediatamente que André Gide viveu a experiência da vida matrimonial.
A partir da ideia de uma esposa, Marceline, que no marido concentra o seu amor, a que este, Michel, corresponde assimetricamente, num afecto em que se confundem gratidão, ternura, piedade, se desenha a narração subtil e delicada de uma dissimulação e, até certo ponto, de um auto-engano.

A subtileza e a delicadeza residem, sobretudo, na própria escrita: é ambiguamente, por uma espécie de velamento, que se dá a revelação. Tudo se vai adivinhando - nada nos é mostrado. O paradoxo é, pois, o da assunção de um imoralismo (para empregar o termo que o próprio título sugere), expresso com um cuidado, um pudor e uma beleza, que formam um filtro estético; e tornam, a teoria subjacente à obra, uma teoria estética, mais do que moral.


A aproximação requerida para se compreender a teoria condutora seria a Nietzsche. [Lembro-me de inúmeras referências a um nietzschianismo em Gide, que nunca, porém, encontrara como aqui.] Entre o casamento e o culto da propriedade, por um lado, que lhe garantem uma harmonia muito semelhante à felicidade, e o apelo da natureza, por outro lado, a libertação da força e do desejo, a coragem de se «devir quem se é» (Nietzsche), desdenhando a massificação da vida humana, Michel é chamado a escolher. A tranquilidade ou a exaltação. A cobardia do comodismo em rebanho ou a nobreza do singular - eis, na sua lógica, os termos em que se pensa o dilema.

O mesmo discreto pudor vela o crime, o acto radical - núcleo do romance - em que esta escolha se resolverá. Não assistimos ao acto; não se nos narra senão o antes e o imediatamente após. Na ausência de deliberações ou comentários do narrador, podemos interrogar-nos sobre que intenção moveu o protagonista, se a piedade, se o egoísmo. Fechamos o livro como sobre um segredo que permanecerá, ainda, por revelar.
   

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